sábado, 30 de julho de 2011

Bolívia aprova lei de telecomunicações


 A nova lei reserva 33% das frequências para o Estado, 33% para o setor privado, 17% para o setor comunitário e 17% para os povos originários e afrobolivianos

Por Idelber Avelar [30.07.2011 11h10]
Foi aprovada ontem pelo Senado boliviano, e deverá ser sancionada em breve pelo Presidente Evo Morales, uma audaciosa lei de telecomunicações que estabelece um marco regulatório para a propriedade privada de rádio e televisão no país e garante vários direitos aos povos originários. A lei também cria um processo de licitação pública para todas as concessões de redes comerciais e estabelece requisitos que deverão ser cumpridos pelas concessionárias privadas. O artigo 1º define o objeto da nova lei como “estabelecer o regime geral de telecomunicações e tecnologias da informação, do serviço postal e o sistema de regulação, na busca do bem viver, garantindo o direito humano individual e coletivo à comunicação, com respeito à pluralidade econômica, social, jurídica, política e cultural da totalidade das bolivianas e dos bolivianos, as nações e povos indígenas originários e camponeses, as comunidades interculturais e afrobolivianas do Estado Plurinacional da Bolívia”.
Segundo a nova lei, a distribuição dos canais de rádio e televisão analógica em nível nacional deverá obedecer o seguinte princípio: ao Estado, caberá até 33% do total de canais; ao setor comercial privado, caberá até 33%; ao setor social comunitário, até 17%; aos povos indígenas originários, camponeses e comunidades afrobolivianas, caberá até 17%. A concessão das frequências se dará mediante decisão do Executivo, no caso das frequências do Estado, e por licitação pública, no caso das frequências destinadas ao setor comercial. No caso do setor social comunitário e dos povos originários, camponeses e afrobolivianos, as concessões serão feitas mediante concurso de projetos.
Acionistas, sócios e pessoas que tenham relação de consanguinidade de até segundo grau com o Ministro da área e com o diretor executivo da agência reguladora, a APTEL, estão legalmente impedidos de serem concessionários. Também não poderão obter licenças todos aqueles que tenham tido declarada a caducidade de seus contratos de habilitação para fornecer serviços de telecomunicações ou aqueles que não estejam em dia com suas obrigações com a APTEL.
O artigo 56 da nova lei garante a inviolabilidade e o segredo das comunicações, dando a elas proteção idêntica àquela de que desfrutam as informações pessoais do cidadão. O artigo 65 cria o Programa Nacional de Telecomunicações de Inclusão Social, destinado ao financiamento de programas e projetos de telecomunicações que permitam a expansão da informação com interesse social.
Nos meios empresariais, a resposta foi a conhecida reclamação de que a “liberdade de imprensa” estava sendo limitada. Os jornais e canais de TV alinhados com a direita boliviana deliberadamente misturaram os 33% concedidos ao Estado com os 34% reservados para o setor comunitário e os povos originários, apresentando a nova lei como se ela determinasse que 67% das concessões estivessem reservadas para os que estão “alinhados com o governo”. A transição para o novo sistema será gradual, feita na medida em que vençam as licenças de funcionamento das atuais rádios e Tvs.  

sexta-feira, 29 de julho de 2011

Obra de Martín-Barbero oferece outro modelo para pensar mídia


Exagerando um pouquinho, poderíamos dizer que a publicação de Dos meios às mediações: Comunicação, cultura e hegemonia (1986), do espanhol radicado na Colômbia Jesús Martín-Barbero, marca a derrota definitiva da Escola de Frankfurt nos debates sobre mídia e comunicação na América Latina. Amplamente dominante nos anos sessenta e setenta, a teoria frankfurtiana trabalhava a mídia como um instrumento de manipulação no interior da sociedade administrada. Essa teoria foi exposta principalmente no texto de Theodor Adorno e Max Horkheimer, de 1947, “A Indústria Cultural”, capítulo mais célebre da Dialética da Ilustração. Sua característica mais visível é a ausência de matizes. A indústria cultural seria um operador da alienação no qual desapareceriam os limites entre arte e entretenimento, e a produção cultural seria colocada, sempre e invariavelmente, a serviço do fascismo. As análises de Adorno sobre o cinema e o jazz—hoje em dia consideradas pouco mais que diatribes mal informadas—foram a coroação desse paradigma. O representante mais ilustre da teoria na América Latina foi o livroPara ler o Pato Donald, de Ariel Dorfman e Armand Mattelart, mas seus seus ecos ainda se fazem ouvir em boa parte do que se escreve sobre mídia hoje em dia.
A obra de Jesús Martín-Barbero é, ao mesmo tempo, um estudo teórico e histórico da invenção do popular e do massivo, assim como das interrelações entre eles. A premissa é relativamente simples e vem de pensadores como Bakhtin, Gramsci e Benjamin: nem toda absorção do hegemônico pelo subalterno é sinal de submissão e nem toda recusa é sinal de resistência. A demonização das formas massivas de cultura, no paradigma frankfurtiano e em seus herdeiros, depende de uma separação taxativa entre o massivo e o popular. Para que se apresentem as formas industriais, mediatizadas de cultura como instâncias de alienação é necessário separá-las categoricamente das formas de cultura entendidas como genuinamente populares. Assim, cinema e televisão são arrolados como manipulação midiática enquanto que a literatura de cordel e a viola caipira permanecem como manifestação cultural legítima. É essa separação que Jesús Martín-Barbero demole pacientemente, com argumentos teóricos e históricos.
Em primeiro lugar, a invenção do massivo, apesar de dar um salto gigantesco com as formas técnicas de reprodução da imagem e do som no século XX, tem seus precursores na própria escrita popular. Desde pelo menos 1790, especialmente na França e na Inglaterra, a emergência do melodrama confere o vértice ao processo que leva do popular ao massivo. Trata-se de um processo que se remonta à Revolução Francesa: a transformação da canalha, do populacho, em povo, e a cenografia dessa representação. A funcionalização da música e a fabricação dos efeitos sonoros, que depois encontrariam na telenovela o seu auge, têm no melodrama a sua origem. O melodrama realiza uma secularização da figura do Diabo (personagem frequente nos dramas medieval e barroco), transformando-o em aristocrata malvado, burguês megalômano ou até mesmo em clérigo corrompido. O gritos e gemidos descompostos, as violentas contorções, os gestos descompassados: toda essa gestualidade melodramática que, ao ser trasladada para o rádio e o cinema, será inicialmente lida como mera estratégia comercial, estava, com efeito, enraizada na proibição da palavra nas representações populares.
Da mesma forma, a chegada dos mecanismos massivos de representação à América Latina não pode ser estudada, argumenta Martín-Barbero, fora do contexto de emergência de um populismo que interpela as massas trabalhadoras, propondo um sistema novo de reconhecimento dos atributos do trabalhador. No cinema mexicano, por exemplo, auge do cinema popular latino-americano, Martín-Barbero vê a reelaboração de uma épica popular, na qual a figura de Pancho Villa é reescrita via mito bandoleirista que combina crueldade e generosidade. Também no rádio-teatro, onde os argentinos, sem dúvida, foram mais longe, Martín-Barbero vê uma série de vínculos com uma longa tradição de expressões da cultura popular.
A passagem dos “meios” às “mediações” teria, então, este sentido: passar de uma análise em que os dispositivos são simples meios para se realizar alienação num público passivo para um modelo de análise em que a hegemonia transforma de dentro o sentido do trabalho e da vida da comunidade. Não se pode, em outras palavras, fazer uma apreciação das mensagens da mídia sem uma análise real do que acontece na recepção dessas mensagens, que nunca é simplesmente passiva e consumidora. É óbvio que isso não significa que essas mensagens devam estar imunes à crítica. Todo o contrário. Mas é simplista tratá-las fora do contexto no qual emergem e dissociadas dos usos a que as submetem seus receptores. As discussões sobre mídia que atualmente têm lugar no Brasil lucrariam muito fazendo referência à obra de Martín-Barbero e questionando o paradigma simplista da alienação e da manipulação cuja decadência essa obra emblematiza mais que qualquer outra.

domingo, 24 de julho de 2011

Da série: o pior da mídia...


Da série: para pensar...



QUAL É O CRITÉRIO EDITORIAL?


O comentário do ‘Jornal Nacional’ deste sábado 23 sobre morte da cantora Amy Winehouse: “Vai deixar muitos fãs, né?”
Nenhuma repercussão sobre o fato de uma cantora dependente química e alcoólatra ter perdido a vida tão cedo. Mas tudo bem, vão comentar bastante sobre isso. O que se segue é o problema.
Depois de um bloco inteiro (exclusivo) de Amy, continuaram com a confirmação de pelo menos 92 mortos na tragédia da Noruega. Demoraram bastante para dizer o que poderia ser a manchete: a motivação foi política e o assassino era da crescente extrema direita europeia que ameaça em todos os cantos – incluindo no Brasil – a democracia.
Por falar em barbárie, a crise humanitária na Somáliacontinua matando diariamente. Pelo menos 720 mil crianças podem morrer de fome, segundo alerta do UNICEF, na região conhecida como ‘Chifre da África’ (Somália, Etiópia, Djibuti e Eritreia).
E o que saiu hoje sobre isso? Nada.
Qual é, afinal, o critério editorial que permite esse nível indecente de desprezo pela vida?

terça-feira, 19 de julho de 2011

News of the world, o poder do medo

Logo Observatório da Imprensa 
 Terça-feira, 19 de Julho de 2011   |   ISSN 1519-7670 - Ano 16 - nº 651 - 19/07/2011



FORA DE CONTROLE

News of the World, o poder do medo

Por Venício A. de Lima em 19/07/2011 na edição 651

De tudo que foi escrito nos últimos dias sobre a atividade criminosa do News of the World, quem parece ter levantado a questão de fundo foi Timothy Garton Ash – professor de estudos europeus da universidade de Oxford (Reino Unido) e fellow da universidade de Stanford (EUA).
Em artigo originalmente publicado no The Globe and Mail (14/7, ver aqui) e republicado na edição de domingo (17/7) do Estado de S.Paulo sob o sugestivo título de “O medo que não ousava dizer o nome”, Ash afirma:
“a debacle de Murdoch revela uma doença que vem obstruindo lentamente o coração do Estado britânico nos últimos 30 anos. (...) A causa fundamental dessa doença britânica tem sido o poder exacerbado, implacável e fora de controle da mídia; seu principal sintoma é o medo. (...) Se a medida final de poder relativo é “quem tem mais medo de quem”, então seria o caso de dizer que Murdoch foi – no sentido estrito, básico – mais poderoso que os últimos três premiês da Grã-Bretanha. Eles tinham mais medo dele do que ele deles” (íntegra aqui).
Será que o diagnóstico de Ash sobre “o poder exacerbado, implacável e fora de controle da mídia” no berço da liberdade de expressão se aplicaria a outras democracias contemporâneas?
O conglomerado da News Corporation
Reproduzo parte de matéria da Agence France Presse sobre o conglomerado midiático do qual o tablóide News of the World fazia parte:
O News Corp. é um império midiático e de entretenimento construído por seu fundador, Rupert Murdoch. Cobrindo uma enorme região geográfica, cotado em bolsa em Sydney e Nova York, o grupo se distingue também pela diversidade de suas atividades, que vai da TV aos jornais, do cinema à internet, e conta também com ícones da imprensa conservadora como The Times e Wall Street Journal, e tabloides sensacionalistas como News of the World e New York Post. À frente do conglomerado, Rupert Murdoch, 80 anos, seu presidente-executivo e “self made man” nascido na Austrália, mantém as rédeas de um império de US$ 60 bilhões em ativos e um volume de negócios anual de US$ 33 bilhões no exercício encerrado no fim de junho. (...) Na Inglaterra, adquiriu primeiramente o News of the World e depois oThe Sun, o tabloide mais popular da atualidade, o tradicional The Times e o Sunday Times. Também possui, entre outros 175 títulos, o The Australian e o The New York Post. Nos Estados Unidos, país onde reside e do qual se tornou cidadão, sua cadeia de notícias a cabo Fox News, que durante a invasão ao Iraque bateu a pioneira CNN em audiência, jamais ocultou seu apoio ao governo do republicano George W. Bush. Além da cadeia Fox, o grupo News Corp. impôs-se na televisão a cabo na Europa (BSkyB na Grã-Bretanha ou Sky na Itália, nascida da fusão Stream/Telepiu) e também na Ásia, com sua filial Star TV. Murdoch também tem interesses no mundo editorial (HarperCollins) e no cinema, com os estúdios Twentieth Century Fox, que produziu êxitos mundiais como Guerra nas Estrelas e Titanic. (...) Em 2007, um dos maiores êxitos do grupo foi a compra da Dow Jones e do Wall Street Journal, por um total de US$ 5,6 bilhões” (íntegra aqui).
No Brasil, a prática política do grupo News Corporation tornou-se mais conhecida pela repercussão das declarações da diretora de Comunicações da Casa Branca, Annita Dunn, que afirmou em outubro de 2009:
“...a rede Fox News opera, praticamente, ou como o setor de pesquisas ou como o setor de comunicações do Partido Republicano. (...) A rede Fox está em guerra contra Barack Obama e a Casa Branca, [e] não precisamos fingir que o modo como essa organização trabalha seria o modo que dá legitimidade ao trabalho jornalístico. (...) Quando o presidente [Barack Obama] fala à Fox, já sabe que não falará à imprensa, propriamente dita. O presidente já sabe que estará como num debate com o partido da oposição” (ver, neste Observatório, “A mídia como partido político“).
Hoje conhecemos o News Corporation através dos filmes da 20th Century Fox e pelos canais Fox da televisão paga: Fox News, Fox Movie, FOX Sports, Nat Geo Wild, National Geographic, dentre outros.
De onde vem o poder?
Além de tratar-se de um conglomerado econômico, fonte natural de poder, o News Corporation se utiliza de outras armas.
Apesar de todas as mudanças tecnológicas e das enormes transformações provocadas pela internet, sobretudo com relação aos formadores de opinião tradicionais, o poder da velha mídia continua avassalador quando atinge a esfera da vida privada. Essa é a base dos chamados “escândalos políticos midiáticos” que atingem a reputação das pessoas, seu capital simbólico.
Alguém acusado e “condenado” publicamente por um crime que não cometeu dificilmente se recupera. Os efeitos são devastadores. Não há indenização que pague ou corrija os danos causados por um “julgamento” equivocado da mídia.
Esse é exatamente o terreno fértil onde o medo – vale dizer, o poder da mídia sobre o cidadão – é cultivado. É o terreno preferido do “jornalismo” praticado pelos tabloides britânicos: a vida privada de figuras públicas – políticos e celebridades – mas também de pessoas comuns que alcançaram algum tipo de notoriedade negativa – por exemplo, por terem sido vítimas de um crime hediondo.
E quando esse “jornalismo”, na ganância por mais e maiores lucros, se utiliza de recursos criminosos de invasão da privacidade, como a escuta telefônica? Desaparecem todos os limites éticos.
Foi isso o que aconteceu com o News of the World.
Para impedir o poder do medo
O caso do News of the World ainda não terminou. Não se sabe se a prática “jornalística” criminosa se limitava ao tabloide inglês ou se estendia a outros veículos do News Corporation na Inglaterra e/ou em outros países.
De qualquer maneira, há lições que podem e devem ser tiradas do episódio para que se elimine a existência de condições favoráveis ao “poder do medo”.
Nesses tempos em que o debate sobre um marco regulatório para a mídia brasileira, mais uma vez, não consegue avançar, duas lições me parecem claras.
** Primeiro: conglomerados empresariais midiáticos se sentem em condições de fazer o que quiserem. Eles se tornam tão poderosos que se desobrigam de cumprir as normas legais e éticas que anunciam defender. É, portanto, indispensável que se controle a propriedade cruzada e as condições de criação e manutenção das redes de radiodifusão, fonte principal da concentração da propriedade dos grupos midiáticos.
** Segundo: a Press Complaints Commission (PCC), órgão independente e autorregulatório que fiscaliza o conteúdo editorial de jornais e revistas no Reino Unido, foi colocada em questão. O premiê David Cameron a classificou de ausente e ineficiente econcordou que algo precisa mudar no que diz respeito ao controle sobre as ações da mídia, ressaltando que é preciso um novo órgão e um novo sistema regulatório (ver, neste OI, “Imprensa britânica debate sistema regulatório“).
Um dos atuais membros da PCC – que deveria ter fiscalizado o “jornalismo” do News of the World – é Ian MacGregor, ele próprio, editor do The Sunday Telegraph, um dos jornais que pertencem ao grupo News Corporation (ver aqui).
Como já é sabido, a autorregulação é bem vinda mas, por óbvio, insuficiente. A regulação através de legislação própria aprovada no parlamento é indispensável.
A ver.
***
[Venício A. de Lima é professor titular da UnB (aposentado) e autor, dentre outros, de Regulação das Comunicações – História, poder e direitos, Editora Paulus, 2011]

Murdoch, o fraudador de espelhos

Logo Observatório da Imprensa
 Terça-feira, 19 de Julho de 2011   |   ISSN 1519-7670 - Ano 16 - nº 651 - 19/07/2011


EDIÇÃO ESPECIAL: DOSSIÊ MURDOCH


"JORNALISMO DE RESULTADOS"




Por Alberto Dines em 19/07/2011 na edição 651
“Nauseabundo, mas não extraterrestre.” Com apenas quatro palavras o jornalista Juan Cruz (El País, domingo, 17/7) derruba o caso Murdoch da esfera das tragédias shakespearianas sobre abusos & abismos do poder e o estende diante de nós com toda sua carga de crueldade e veracidade.
Murdoch não é uma excrescência, não é falácia ou farsa, não é science fiction nem evento casual, singular. O espetáculo midiático-político a que assistimos galvanizados há mais de dez dias não tem nada de absurdo ou fantasioso. Não leva a assinatura de Karl Kraus, Bertold Brecht, George Orwell, Orson Welles ou Billy Wilder: estedream team de críticos jamais conseguiria engendrar um enredo tão terrível e catastrófico para a imprensa livre.
O impensável está aí, ao vivo, em cores, banda larga, 3D, alta velocidade, altíssima definição, continuamente repetido, reeditado. Vem sendo montado, a céu aberto, sem segredos ou disfarces, há pelo menos duas décadas com a participação de um elenco planetário.
A última década do século 20 e a primeira do 21 somaram-se para produzir a mais arrasadora caricatura da civilização dita ocidental. E o objeto mais distorcido, deformado, desfigurado, desvirtuado desta civilização foi o espelho – a mídia periódica.
Ao invés de refletir com realismo, trincou, truncou; no lugar de sugerir contemplação, oferece fragmentações, pó. O mundo não se reconhece, não se encontra, esbalda-se delirante entre nostalgias e futurismos porque a referência, o espelho, partiu-se.
Personagens equivalentes
Rupert Murdoch é o epítome desta degeneração alegre e consentida. É o fraudador de espelhos por excelência. Seu império global foi montado a partir dos padrões do “jornalismo de resultados”, seus paradigmas profissionais foram executados por uma ex-secretária, sua herdeira espiritual, que jamais havia freqüentado outra redação, hoje felizmente hospede de um xilindró britânico [em seguida, solta sob fiança].
As convicções políticas de Murdoch não diferem muito dos magnatas da imprensa alemã que nos anos 1920 e 30 apostaram suas fichas num agitador de rua, o único que segundo eles poderia enfrentar o bolchevismo – Adolf Hitler. Também detestavam espelhos, não queriam mirar-se nele e descobrir o papelão que desempenhavam.
Não se pode separar os objetivos, estratégia e táticas da News Corp. do ideário político do seu criador. Os tablóides ingleses não nasceram reacionários; ao contrário, dirigiam-se àqueles que hoje fariam parte da classe C. Murdoch injetou neles altas doses de direitismo populista. Quando apoiou o novo trabalhismo de Tony Blair, tinha um projeto de liquidar a esquerda inglesa. Quando comprou o Times e o Sunday Times extirpou deles os resquícios da respeitabilidade liberal que ainda conservavam. Está fazendo o mesmo com o Wall Street Journal, de Nova York.
Os jornais brasileiros que nos últimos dias reproduziram o elogio de Murdoch pelo colunista Roger Cohen, doInternational Herald Tribune, fazem parte da rede da Opus Dei. Coincidências.
Financial Times e o Economist são igualmente conservadores, detestam qualquer interferência do Estado na vida econômica. No entanto, sempre se opuseram às idéias & jogadas de Murdoch. Não foram suficientemente determinados nesta oposição, gente fina não briga em público. Não perceberam que Murdoch e Hugo Chávez se equivalem. Igualmente nocivos para uma imprensa livre.
Guardian desmascarou Murdoch porque é editado por uma entidade não-lucrativa. Isso significa alguma coisa?
A imprensa brasileira foi na onda do Tea Party, comprou a idéia de que Barack Obama é socialista, portanto não pode ser reeleito. Quem vendeu este produto foi a Fox News, cuja contribuição para a qualidade do telejornalismo americano é idêntica à do falecido News of the World ao jornalismo impresso britânico.
Ramo propício
Murdoch combinou imprensa e poder político num momento em que o jornalismo mundial procurava manter, ao menos na aparência, os preceitos jornalísticos consagrados no caso Watergate. A promiscuidade da imprensa com o poder econômico é ruinosa para ambos. Murdoch vive desta promiscuidade, cresceu graças a ela. É o segredo de seu sucesso empresarial: enquanto os publishers procuravam manter uma aparente decência, o australiano topava qualquer negócio.
O segundo maior acionista da News Corp. depois da família Murdoch é um príncipe saudita que no sábado (16/7) falou à BBC a bordo do seu portentoso iate em nome dos acionistas preocupados com a desvalorização dos seus ativos. O que fizeram esses acionistas nos últimos anos quando o News of The World começou a freqüentar as manchetes na condição de malfeitor? E por que aceitam pagar ao espanhol José Maria Aznar, herdeiro de Franco, 220 mil dólares/ano?
O espelho, além de partido, está embaçado e não apenas no hemisfério Norte. Se os imensos cadernos de economia cobrissem o mundo de negócios com o mínimo de independência, o mega-empresário Abílio Diniz não teria iniciado há dois anos o vexante acordo com o Carrefour que agora foi obrigado a suspender.
Folha de S.Paulo despediu-se solenemente do seu colunista, o ex-presidente da República e atual presidente do Senado José Sarney, depois de 20 anos de agradável convívio na página mais nobre do jornal. Em algum quality paper do mundo desenvolvido seria concebível manter como colaborador o chefe do Legislativo? Em que difere esta parceria da outra que o premiê inglês David Cameron mantém com a escória do jornalismo mundial?
Murdoch só conseguiu arrasar a credibilidade da instituição jornalística porque os órgãos de controle da concorrência nos EUA e no Reino Unido – encarregados de desativar cartéis e oligopólios – não o impediram de concentrar numa mesma cidade jornais e televisões.
Se Murdoch atuasse no segmento da aviação comercial ou da indústria farmacêutica, mesmo que fosse mais inescrupuloso do que é, não teria chegado aonde chegou. Teve tino, escolheu um ramo onde a impunidade é garantida: a fabricação de espelhos defeituosos.

quinta-feira, 7 de julho de 2011

Caso Strauss-Kahn: o linchamento prévio pela mídia


Steven Erlanger
The New Yorke Times
Houve um choque na Franca após a prisão do Sr. Strauss-Kahn em Maio e intensas críticas sobre a maneira pela qual ele foi exibido algemado, puxado para uma sessão de tribunal televisivo com a barba por fazer e confinado em uma célula de Rikers Island sob vigilância anti-suicídio. Houve confusão e críticas sobre a alegria com que os tablóides, especialmente de Nova York, destacavam todas as humilhações e as transformavam em clichês sobre os franceses - "Chez Perv" e "Legs Frog It" - na primeira pagina. E havia um sentimento que não era apenas o Sr. Strauss-Kahn, que estava sendo humilhado tão alegremente, mas a própria França.
Agora, com o caso parecendo entrar em colapso com questões sobre a credibilidade da governanta guinéu, que o acusou, e Strauss-Kahn libertado da prisão domiciliar, os franceses estão sentindo um tipo de sentimento com um júbilo amargo próprio e renovando suas críticas sobre a pressa para o julgamento, as preocupações públicas com os promotores eleitos e com a natureza brutal, carnavalesca e de alguma forma selvagem da sociedade, democracia e justiça americana.
O ex-primeiro-ministro Lionel Jospin, disse sexta-feira que "ele foi jogado aos lobos" no sistema americano, o ex ministro da Justiça Robert Badinter chamou o tratamento dispensado a Strauss-Kahn de "um linchamento, um assassinato pela mídia."
Em um editorial neste fim de semana, o Le Monde escreveu que "o mínimo que se pode dizer é que os caprichos do procedimento americano "haviam" condenado Dominique Strauss-Kahn antes mesmo do início de uma séria investigação." Criticando a "máquina da mídia-judicial”, segundo o jornal os custos para o Sr. Strauss-Kahn foram pesados, incluindo a perda de seu emprego e seu futuro político. O jornal disse que o sistema americano de promotor eleito é dependente dos eleitores e da forma como ele funciona com a imprensa, com vazamentos de casos policiais e "terríveis fotos transmitidas ilegalmente para a imprensa e, então, também reproduzidas ilegalmente por certos jornais - tudo foi feito para colocar o Sr. Strauss-Kahn em uma situação de extrema fraqueza antes mesmo do início de um inquérito."
Noëlle Lenoir, ex Ministra dos Assuntos Europeus, disse que muitos franceses sentiram-se insultados. "As pessoas ficaram chocadas com o circo da mídia", disse ela. "Eles achavam que a promotoria estava praticando causa comum com os tablóides. Portanto, há um pouco de vingança naquilo que é visto como um comportamento anti-francês".
Apesar de ter sido a promotoria americana que revelou varias mentiras da governanta no seu passado, seu pedido de asilo e seus impostos, a reviravolta "fez acordar este dormente antiamericanismo, e os grandes perdedores são a justiça americana e a polícia de Nova York", disse Dominique Moisi, um analista de longa data das relações franco-americanas que tem estudado e ensinado nos Estados Unidos. "O caso fez danos à imagem da América e recriou os estereótipos negativos que existia antes."
Mesmo na década de 1990, "quando éramos muito próximos, com o fim da guerra fria e antes da segunda guerra do Iraque, estávamos divididos pela linha da pena de morte," o Sr. Moisi disse.
"Há uma sensação na Europa que você não pode ser totalmente civilizado com a pena de morte", ele disse. "Agora este sentimento é reforçado - que os Estados Unidos não são um país plenamente civilizado com uma polícia que se comporta daquele jeito, pretendendo humilhar", ele continuou. "Há uma sensação de ser um país muito perigoso."
Estas diferenças culturais, destacadas na impetuosidade da cobertura da notícia pela mídia americana, estimulam a indulgência em clichês culturais nos dois lados do Atlântico, reminiscente do período em que a França se recusou a apoiar a guerra do governo Bush no Iraque e alguns americanos responderam com "liberdade dos batatas fritas "e chamaram os franceses de " a rendição dos macacos comendo queijo” (uma frase que foi usada na série de tv dos Simpsons debochando da facilidade com que os franceses se renderam aos alemães na II Guerra Mundial).
O escritor francês Bernard-Henri Lévy, um defensor e amigo do Sr. Strauss-Kahn, foi ubíquo, escrevendo e falando da sua contínua raiva contra o tratamento de natureza “pornográfica" feito ao Sr. Strauss-Kahn, e da "obscena" conferência na imprensa que o advogado da acusação realizou detalhando as agressões físicas enquanto tentava reforçar a condição de vítima da funcionaria do hotel. Escrevendo para o The Daily Beast,  o Sr. Lévy criticou a manipulação em preto-e-branco do caso, "a canibalização da justiça pelo espetáculo secundário".
Ele acusou os Estados Unidos de ter uma bússola moral e política simplista, dizendo que a camareira, "por ela ser uma imigrante pobre, seria inevitavelmente inocente, e o Sr. Strauss-Kahn por ser poderoso, seria inevitavelmente culpado.”
Ele exigiu que o Sr. Strauss-Kahn fosse totalmente exonerado das acusações contra ele, que incluíam enquadramento no crime de cometer um ato sexual criminoso, abuso sexual e tentativa de estupro.
E o Sr. Levy repreendeu os Estados Unidos ao estilo intelectual francês. "América, a pragmática, que se rebela contra Ideologias, este país de habeas corpus que Tocqueville alegou possuir o sistema de justiça mais democrático do mundo, empurrou este francês Robespierrista, infelizmente, para os extremos dessa loucura", ele escreveu, invocando o ideológico derramamento de sangue da Revolução Francesa. "Tudo isso exige, ao menos, uma séria, honesta, e substancial busca da alma."
Mais amplamente, a imprensa francesa, que se manteve na trilha de qualquer insulto anti-francês na mídia de Nova York – o Le Monde, por exemplo, teve um artigo chamado "Lixo - o caso DSK contado pelas primeiras páginas do The New York Post "- foi cheio de surpresa neste fim de semana em "A reviravolta na mídia americana", como o Journal du Dimanche disse, de repente atacando a governanta com o mesmo tablóide de cortar a respiração.
As pessoas comuns da França sentiram um desconforto sobre o tratamento do caso pelos norte-americanos e o sentimento anti-francês que veio com isso. Kevin Benard, 28, um corretor imobiliário, disse que o tratamento inicial ao Sr. Strauss-Kahn tinha dado a impressão de que ele era culpado mesmo antes da investigação ter começado. "Os Estados Unidos têm um sistema de justiça muito dura", ele disse. "Nós acreditamos que as pessoas são inocentes antes de ser comprovada sua culpabilidade, e não o contrário."
Patrice Rand, 50, de Bordeaux, que estava visitando Paris, disse que se o Sr. Strauss-Kahn revelou-se inocente, isto mostra "o erro colossal" feito pelo sistema da justiça norte-americana – e que temia mais fogo no antiamericanismo. “Para as relações franco-americanas, na verdade, seria melhor se comprovada sua culpa," disse o Sr. Rand.
Marc Placet, 30, disse que esteve em Nova York uma semana atrás, e ficou impressionado com o sentimento anti-francês por lá. "Eu acho que o caso DSK acordou o povo francês para bater nos EUA ", disse. "Em Nova York, as pessoas nos bares ou na rua debochavam de mim por ser francês. "Eles, invariavelmente, lembravam de Strauss-Kahn e chamavam os franceses de ‘perversos’ e coisas assim", ele disse.
Destot Emilie, 26 anos, estudante, foi ambivalente. "Fiquei chocado quando vi aquelas fotos do Strauss-Kahn algemado, barba não raspada. Mas eu acho que é como as coisas funcionam lá, e mesmo sendo espetacular, revela-se às vezes ser rápida e eficiente."
Alguns observadores políticos disseram que o temor de uma reação antiamericana é exagerado e nocivo. Arlette Chabot, editor-chefe da rádio Europe 1 disse: "Eu sempre achei que a conversa do antiamericanismo francês era exagerada", citando o amor francês para com os presidentes Bill Clinton e Obama - mas não o visceral desprezo aos presidentes Ronald Reagan e George W. Bush.
O Sr. Moisi acha que o Sr. Strauss-Kahn, cuja próxima audiência está marcada para 18 de Julho, pode acabar bem politicamente. O Partido Socialista quer ganhar a todo custo, ele disse, e podem decidir que o Sr.Strauss-Kahn tem uma nova imagem. "Se D.S.K. retornar triunfante como uma vítima da justiça americana isso pode mudar tudo", ele disse.