Mercado
Publicitárias denunciam abusos de que são vítimas no trabalho e afirmam: os anúncios que indignam as mulheres nascem da cultura interna das próprias agências
por Agência Pública — publicado 22/03/2015 09h53
Reprodução
Por Andrea Dip
“Não existem muitos casos de propagandas machistas no Brasil porque a publicidade brasileira é madura para perceber que a pior coisa que pode fazer é irritar o consumidor, seja ele mulher, homem ou criança. De qualquer forma, nós não temos uma declaração oficial a respeito desse assunto”. Essa foi a resposta da assessoria de imprensa do Conar (Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária), por telefone, à pergunta da Pública referente a algumas peças publicitárias lançadas no Carnaval e no Dia Internacional da Mulher, rechaçadas nas redes sociais por serem consideradas machistas – algumas inclusive retiradas de circulação. O Conar é um órgão de autorregulamentação das agências publicitárias, encarregado de receber denúncias de consumidores ou órgãos públicos e julgar se a propaganda deve ser tirada do ar e a agência eventualmente advertida. Das 18 denúncias de machismo em propaganda recebidas em 2014 (pesquisadas pela Pública no site do Conselho), 17 foram arquivadas, e apenas uma, da cerveja Conti, que dizia em sua página do Facebook “tenho medo de ir no bar pedir uma rodada e o garçom trazer minha ex” terminou com um pedido de suspensão e advertência da agência que realizou a campanha.
Outra campanha, do site de classificados bomnegócio.com, em que o Compadre Washington chamava uma mulher de “vem ordinária”, que havia recebido pedido de suspensão, foi posteriormente reavaliada e o processo arquivado. As justificativas das decisões geralmente são de que as propagandas não são machistas mas sim humorísticas, como esta de março de 2014, referente a um spot de rádio da Itaipava: “Uma consumidora paulistana entendeu haver preconceito machista em spot de rádio da cerveja Itaipava. A anunciante e sua agência alegam o caráter evidentemente humorístico da peça publicitária. O relator aceitou esse ponto de vista e recomendou o arquivamento, voto aceito por unanimidade”.
A visão do Conar parece ser compartilhada pela maioria das agências, criadoras das peças publicitárias. Chamada a dialogar sobre a campanha “Verão” em que uma mulher chamada Vera é impedida de passar por um homem na praia, ela tentando correr e ele barrando sua passagem com o slogan “não deixe o Verão passar” ou em uma que ela leva e traz cervejas para os homens só de biquíni enquanto eles olham para seu corpo e chamam “vem Verão, vai Verão” ou ainda uma terceira em que a moça aparece de biquíni com uma lata e uma garrafa de cerveja na mão com o slogan “faça sua escolha” com a indicação de 300, 350 ou 600 ml – estes em uma alusão ao silicone do seio da modelo, a agência preferiu se pronunciar apenas por e-mail de sua assessoria de imprensa. “A Y&R, agência que criou a campanha, respeita, bem como seu cliente, todas pessoas e em especial as mulheres. Em momento nenhum faz qualquer tipo de alusão para desmerecer ou agredir quem quer que seja e considera que o humor utilizado não tem tom de agressividade ou qualquer juízo de valor”.
As entrevistas também foram negadas pela agência F/Nazca Saatchi & Saatchi, responsável pela campanha da Skol para o Carnaval que teve que mudar a campanha depois que seus cartazes de “Deixei o não em casa” foram pichados com a frase complementar “mas trouxe o nunca” por duas garotas de São Paulo, e pela Ajinomoto do Brasil, fabricante da Sopa Vono, que teve sua fanpage no Facebook invadida por reclamações por peças consideradas machistas e também teve de tirá-las do ar. Via assessoria de imprensa a F/Nazca Saatchi & Saatchi e a Ajinomoto disseram que lamentam o ocorrido, respeitam as mulheres, que o objetivo da peça era humorístico e que estão repensando suas estratégias.
De onde surge então o machismo das peças criadas pelas agências? Uma nova pista surgiu quando através de um pedido feito em um grupo fechado no Facebook, 15 mulheres de 20 a 40 anos, atuantes em áreas diversas da publicidade contaram à Pública como é o ambiente em que trabalham, dentro das agências. Os relatos, feitos sob anonimato pelo temor de perder o emprego, trazem casos de abuso, assédio e violência psicológica que viveram ou ainda vivem em suas carreiras. Trechos destes depoimentos estão destacados em itálico ao longo do texto.
“Antes de falarmos sobre publicidade machista, temos que falar sobre machismo na publicidade” argumenta a diretora de criação Thaís Fabris, idealizadora do projeto 65|10 que discute o papel da mulher na publicidade. “O ‘65’ vem do dado de uma pesquisa do Instituto Patrícia Galvão que aponta que 65% das mulheres brasileiras não se identificam com a publicidade e com a forma com que são retratadas pela publicidade. O número ‘10’ é de uma pesquisa que nós fizemos que mostrou que apenas 10% dos criativos dentro das agências brasileiras são mulheres. E é na criação que as campanhas são feitas”.
A gerente de planejamento Carla Purcino concorda: “Quando a gente olha para a representatividade feminina na publicidade percebe que é praticamente 50%. Mas a distribuição dentro dos departamentos é muito diferente. Entende-se que a criação é um reduto masculino e que a mulher é mais adequada para o departamento de atendimento. E na maioria das vezes as mulheres do atendimento precisam ser bonitas para seduzir os clientes. Quem trabalha no meio sabe de agências que já demitiram times inteiros de funcionárias dessa área por não serem tão bonitas. ‘Contratem garotas bonitas’. E isso obviamente influencia sobremaneira o resultado final”. As duas disseram topar dar o nome por trabalharem hoje em agências mais inclusivas mas Carla lembra que chegou a ouvir de um diretor de uma agência onde trabalhou, após pedir a negociação de alguns direitos trabalhistas, que “se ela fosse homem ele meteria a mão na sua cara”. Por outro lado, por se colocar contra campanhas machistas nas agências onde trabalhou, ela já foi chamada a ajudar quando uma delas foi atacada nas redes sociais: “Me pediram ajuda para contornar a situação e a gente conseguiu resolver mas a coisa ainda acontece muito de fora pra dentro. Por pressão das pessoas as agências são obrigadas a resolver aquelas campanhas pontuais, a coisa não parte de dentro pra fora. É algo como ‘ai, que gente chata’. E as publicitárias ainda têm muito medo de se pronunciar. Elas normalmente se calam diante de piadas e colocações machistas para não perderem seus empregos. Tem uma grande agência que entrega, na festa de fim de ano, um prêmio chamado ‘calota de ouro’ referindo-se ao volume da vagina da mulher. E para sobreviver, elas acabam entrando no jogo”.
Veja aqui, imagens encontradas da festa da agência África em 2010.
“Trabalhei para marcas como Brahma, Skol e Budweiser, em que o machismo impera em qualquer peça de comunicação. Por mais que tentássemos abrandar ou mostrar um novo viés para a campanha, sempre éramos obrigadas a seguir os conceitos e o lugar-comum das marcas de cerveja em que a mulher é só mais um ser criado para satisfazer e obedecer o homem”. R.J. 32
Como diretora de criação, Thaís diz que, para fazer parte do grupo, muitas mulheres também acabam se masculinizando e até reproduzindo esse machismo. “É a maneira que encontram de preservar suas carreiras. Emudecem e não questionam ou entram na lógica e reproduzem”.
Não existem dados oficiais sobre diferenças de salários e cargos na publicidade brasileira separados por gênero mas no geral, segundo o PNAD de 2013, mulheres recebiam cerca de 26,5% a menos que homens na mesma posição. E segundo a pesquisa “A mulher publicitária, preconceito e espaço profissional: estudo sobre a atuação de mulheres na área de criação em agências de comunicação em Curitiba” realizada em 2009, as mulheres correspondiam a menos de 20% nas áreas de criação. Em sua conclusão, o estudo aponta que muitas vezes as próprias mulheres contavam casos de discriminação sem entender como tal: “Percebe-se, assim, que a discriminação por parte do gênero masculino em relação ao feminino está tão enraizada na profissão, que acaba sendo acatada como uma manifestação sociocultural natural para as mulheres que trabalham dentro desses ambientes extremamente machistas. O discurso dos indivíduos que atuam na área, afirmando que existem mulheres que não servem para essa profissão por serem muito frágeis e fracas, é típico da construção hierárquica desigual da sociedade, que surge de seus tempos mais remotos.”
“Existe quase uma ordem natural de colocar as mulheres nas áreas de atendimento e gerenciamento de projeto do que em qualquer outra. existe uma série de piadas extremamente machistas e misóginas que ‘brincam’ com essa relação de mulher sempre virar atendimento”. F.B, 32
Recomendações internacionais
A pesquisa “Representações das mulheres nas propagandas na TV” citada pela Thaís no começo da matéria, foi publicada em 2013 pelo Instituto Patrícia Galvão em parceria com o Data Popular. De acordo com os dados obtidos 84% dos entrevistados (homens e mulheres de todo o país) reconhecem que o corpo da mulher é usado para venda de produtos; 58% entendem que as propagandas na TV mostram a mulher como objeto sexual e – ao contrário do que acredita o Conar – 70% defendem a punição aos responsáveis por propagandas que mostram a mulher de modo ofensivo.
O Brasil é signatário da Declaração e Plataforma de Ação da IV Conferência Mundial Sobre a Mulher, realizada em 1995 em Pequim, que determina: “incentivar a participação das mulheres na elaboração de diretrizes profissionais e códigos de conduta ou outros mecanismos apropriados de auto-regulação, para promover uma imagem equilibrada e não-estereotipada das mulheres na mídia; incentivar a criação de grupos de vigilância que possam monitorar os meios de comunicação e com eles realizar consultas, a fim de garantir que as necessidades e preocupações das mulheres estejam apropriadamente refletidas neles; promover uma imagem equilibrada e não-estereotipada da mulher nos meios de comunicação”.
Mas depois disso, o país já recebeu recomendações internacionais para que preste mais atenção à forma como retrata a mulher em suas propagandas. Em 2003, o relatório do comitê da Cedaw (Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher do qual o Brasil é signatário) afirmava: “O Comitê está preocupado com a evidente persistência de visões conservadoras e estereotipadas, comportamentos e imagens sobre o papel e responsabilidades de mulheres e homens, os quais reforçam um ‘status’ inferior das mulheres em todas as esferas da vida”. O relatório também recomendava que fossem criados programas para fomentar “a eliminação de estereótipos associados aos papéis tradicionais na família, no trabalho e na sociedade em geral”; e que os meios de comunicação (mídia) “fossem encorajados a projetar uma imagem positiva das mulheres e da igualdade no ‘status’ e nas responsabilidades de mulheres e homens, nas esferas pública e privada”.
“O diretor da agência onde eu trabalhava diversas vezes insinuava que eu (por ser lésbica) queria ficar com as meninas da equipe dele. Quando tinha Happy Hour da agência, ele me fazia perguntas constrangedoras a respeito da minha vida pessoal e ainda ficava perguntando o que eu gostaria de fazer com as meninas da equipe dele se elas me dessem bola. Isso tudo é pouco. Diversas vezes esse diretor insinuou coisas pra mim, fazia aqueles “elogios” desconfortáveis sobre roupa, corpo, olhar. Dizia que se eu conhecesse como ele era, eu não seria lésbica”. P.R, 29
De acordo com a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher – Convenção de Belém do Pará – de 1994 – o Brasil tem cinco formas de violência contra a mulher tipificadas: sexual, física, moral, psicológica e econômica, explica Raquel Marques, diretora da ONG Artemis. “Na Venezuela, a mesma convenção deu origem a uma lei com 14 tipificações de violência contra a mulher, inclusive a midiática. Porque você transmitir mensagens que reforcem estereótipos ou reforcem violência causa dano coletivo e o dano coletivo vem da naturalização dos comportamentos. A publicidade, mais do que nenhum outro veículo traz expressões que se tornam até parte do nosso vocabulário, jingles, chavões, é muito poderoso”.
“Cansei de contar quantas infinitas vezes tive que dizer em voz alta para os diretores e supervisores o quanto eles estavam sendo machistas com determinadas peças. Às vezes, nem só nas campanhas mas também na conversinha de cozinha. Por eu sempre me posicionar firmemente, eles me chamavam de feminazi e sempre que podiam, faziam piadas machistas perto de mim para me ver reagir”. T.B. 29
Incentivo à violência contra a mulher
E essa violência pode ser incentivada pela publicidade como observa Thaís Fabris. “Nós publicitários temos que perceber a responsabilidade que temos enquanto criadores de comunicação em massa. Não é porque uma coisa funciona, que as pessoas compram, que a gente pode reforçar estes estereótipos muito perigosos. Quando a gente fala em ‘mulher objeto’, essa mulher está lá na outra ponta, com o homem se achando dono dela e acreditando que se aquele brinquedo não funcionar do jeito que ele quer, ele pode quebrar. E você tem uma mulher morrendo a cada 90 minutos no Brasil. A gente está sim reforçando e habilitando esse comportamento. A propaganda que pergunta ‘você está pronta pra ir pra praia?’ tem responsabilidade sobre a mulher que está morrendo em mesa de cirurgia ou morrendo de anorexia! A propaganda é feita pra isso, pra influenciar decisões e gerar a compra de produtos. Mas eu já disse e repito: antes de falar sobre publicidade machista, precisamos falar sobre machismo na publicidade. Porque ela existe, é real, acontece todos os dias dentro das agências”.
“Os meninos de uma agência na qual trabalhei encontraram com uma modelo famosa numa padaria e voltaram dizendo o quanto ela era gostosa, “rabuda” entre outros adjetivos horríveis. Senti-me enojada com os comentários, a ponto de não aguentar e rebater dizendo que mulher não era pedaço de carne. Isso foi suficiente para que todos se unissem contra mim e começassem então um massacre machista. Tudo o que eu falava era contestado. Todas as opiniões que eu dava eram minimizadas. Todos os meus trabalhos eram “meia-boca”. Acho que minha estadia nessa agência, em especial, foi uma das piores experiências profissionais que tive na minha vida”. C.C, 34
A reação delas
Esse machismo dentro e fora da publicidade começa a criar novos nichos de atuação para as mulheres que se levantam contra ele. A Think Eva, é uma empresa criada pelas amigas Juliana de Faria (Jules), Maíra Liguori, e Nana Lima para prestar consultoria para marcas, agências, instituições, ONGs e órgãos públicos que queiram dialogar com as mulheres de um “jeito não ofensivo, mais efetivo e respeitoso”. Jules é a idealizadora do Think Olga, site sem fins lucrativos que promove o empoderamento feminino e responsável pela campanhaChega de Fiu Fiu. “As mulheres não estão mais deixando passar. Muito porque hoje elas mesmas falam de suas angústias e não dependem mais de uma revista feminina pra isso, por exemplo. A gente vive um momento de transição e existe gente querendo entender isso. Nós trabalhamos com essas pessoas” explica Jules. Apesar de ter sido lançada há pouco mais de um mês, a empresa já recebeu vários pedidos inclusive de palestras para funcionários de agências e revistas. O 65|10 da Thaís Fabris também oferece serviços de consultoria criativa para empresas e coaching profissional para criativos. Até uma cerveja feminista foi criada pelo grupo, que pretende com isso levar a discussão pra mesa do bar. “Pensamos em criar com a cerveja um ‘puxador de assunto’. Não é sobre supremacia feminina, é sobre igualdade entre gêneros” define Thaís.