sábado, 2 de novembro de 2019

Ken Loach: “Sou otimista, os povos sempre resistirão”

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Em ‘Sorry We Missed You’, o cineasta britânico denuncia o trabalho precário e o colapso social

 ROCÍO GARCÍA BEATO
Madri 02 NOV 2019 - 12:43 BRT

O diretor Ken Loach, retratado no Festival de Cinema de San Sebastián, em setembro.
O diretor Ken Loach, retratado no Festival de Cinema de San Sebastián, em setembro.GORKA ESTRADA
Extremamente amável, a elegância e suavidade de Ken Loach contrasta com a firmeza na defesa implacável dos direitos da classe trabalhadora e no olhar sempre emocionado sobre a pessoas anônimas. Em seu cinema não há espaços nem concessões. Aos 83 anos, o diretor volta à carga com Sorry We Missed You, um filme que relata o exaustivo e difícil rotina de uma família — mãe cuidadora de doentes, pai entregador autônomo e dois filhos adolescentes — que tenta sobreviver na selva do livre mercado. Sua exibição no último festival de Cannes causou uma grande comoção, a mesma de quando foi projetado no concurso de San Sebastián, onde conquistou o Prêmio do Público de melhor filme europeu. Sorry We Missed You, escrito novamente com seu braço direito, o roteirista Paul Laverty, estreou quinta-feira nos cinemas espanhóis. Apesar de tudo que seus filmes mostram — entre eles, Chuva de Pedras, Meu Nome é Joe e Eu, Daniel Blake, sua segunda Palma de Ouro —, Ken Loach não é um homem pessimista. Acredita na força dos povos e no futuro da esquerda. “Os povos sempre resistirão. Sempre haverá alguém que lute”, garantiu o cineasta em uma entrevista realizada em setembro em San Sebastián.

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Sorry We Missed You volta o olhar para os entregadores autônomos submetidos a normas draconianas impostas pelas plataformas de comércio eletrônico. O diretor não quer falar de escravidão — “a palavra ‘escravo’ tem outras conotações” —, mas sim de novas e terríveis formas de exploração, consequência da economia de livre mercado. “Apenas uma geração atrás, você tinha um emprego e os empresários obtinham lucros, é claro, mas era um emprego seguro, você podia recorrer aos sindicatos, podia ficar doente porque estava protegido, podia sair de férias e trabalhava oito horas por dia. Seu salário permitia que você vivesse de maneira digna. O que ocorreu, de forma inevitável em uma economia de livre mercado, é que as grandes corporações competem entre si para vender suas mercadorias, e competem com os preços. Como conseguir que o preço seja mais baixo que o da concorrência? Muito simples, pagando menos para os trabalhadores”, reflete. O inglês, nascido em Nuneaton, não acredita que a Internet em si tenha contribuído para esta situação nefasta: “A Internet é uma ferramenta de conhecimento neutro e isso é um grande avanço, mas se for usada para controlar os empregados, como se vê no filme, é um desastre para o trabalhador. Não é um problema da ciência, mas sim de quem controla essa ciência, dos proprietários da tecnologia”.
Embora não considere acabado o Estado de bem-estar na Europa, o cineasta se indigna — sempre de forma tranquila, mas firme — com a falta de recursos públicos para as classes populares e com a maneira como as empresas privadas estão abrindo caminho para se encarregar de serviços que deveriam ser uma atribuição do Estado. “Há dois motivos para a esperança. O primeiro é que os povos sempre resistirão e alguém sempre lutará. O segundo é que vivemos em um sistema que não pode continuar por mais tempo. Pensemos, por exemplo, no trabalho dos entregadores que utilizam gasolina para fazer suas entregas, quando o petróleo tem os dias contados. Estamos destruindo os pequenos comércios nos centros das cidades e dos povoados, encomendando e comprando tudo pela Amazon. Queremos continuar assim?”.
Ken Loach se recusa a se referir a seu cinema no singular, e fala apaixonadamente de todas as histórias maravilhosas que vão sendo descobertas: “Tenho de falar no plural porque sempre trabalho com Paul Laverty. Somos uma equipe, por isso não gosto de falar só de mim. As pessoas que vamos conhecendo na vida são as que nos servem de inspiração. Para onde quer que você olhe, há tantas histórias para contar, e o mais maravilhoso é poder contá-las. Durante a preparação deste filme, conhecemos mulheres que cuidavam de idosos com uma generosidade e um carinho muito maior do que aquilo que lhes pagavam”.
E, como não poderia deixar de ser, a saída do Reino Unido da União Europeia surge na conversa: “O Brexit é absurdo, porque os grandes problemas das pessoas, como o trabalho precário, a pobreza, a insegurança, a falta de moradia e o colapso dos serviços públicos, não serão solucionados. O Brexit é uma distração para não enfrentar os grandes problemas do Reino Unido. É um conflito entre os dois bandos da direita, um que acredita precisar do mercado europeu, e o mais extremo que quer sair da União Europeia para pagar menos impostos e abrir o mercado para os Estados Unidos”.
Caso triunfe o chamado “Brexit duro”, Ken Loach prevê um capitalismo ainda mais desmedido em seu país: “Se sairmos da União Europeia e os conservadores estiverem no poder, o Reino Unido se transformará em um grande mercado de trabalho barato, sem nenhum tipo de regulação, que atrairá investimentos estrangeiros para os serviços públicos. É realmente preocupante. O sistema de saúde poderia cair nas mãos de grandes empresas americanas. Esse é meu maior medo”.
Apesar de tudo, o diretor confia na esquerda de seu país. Diz que é um exemplo para a Europa. “A esquerda britânica é forte e está unida, com um líder, Jeremy Corbyn, totalmente oposto ao que foi Tony Blair, por seu apoio ao sindicalismo e aos investimentos públicos, além de enfrentar o problema do meio ambiente”, destaca. Pela primeira vez em sua vida, confessa que pode falar bem alto e com orgulho: “Sigam o exemplo da Grã-Bretanha. Conseguimos erradicar as divisões da esquerda desde que Corbyn está na liderança [do Partido Trabalhista]. Finalmente [a esquerda] tem a oportunidade de chegar ao poder. Nunca pensei que poderia dizer isto. Precisamos abandonar os egos, aceitar as diferenças e aprender com Lenin, cujo lema era ‘Terra, pão e paz’”

 

sexta-feira, 1 de novembro de 2019

Concessão da Globo: Estado não pode ser mais severo com umas do que com outras

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Globo deve observar regras de renovação de concessão, assim como todas as outras emissoras de radiodifusão. Só que isso nunca aconteceu…

*Por Maria Mello e Marina Pita



A live em que o presidente Jair Bolsonaro reage à reportagem do Jornal Nacional, da Rede Globo, veiculada no último dia 29, incluindo seu nome entre os citados na investigação do assassinato da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes, ocupou timelines e hashtags. E suscitou um debate fundamental de ser retomado no país – ainda que não pelas mesmas razões apresentadas pelo chefe do Executivo: a renovação das outorgas de radiodifusão no país.
Como é sabido, as emissoras de rádio e TV utilizam o espectro eletromagnético, um bem escasso e público, para suas transmissões. Prestam, assim, um serviço público mediante concessão do Estado brasileiro. De acordo com o Artigo 221 da nossa Constituição Federal, quatro devem ser as prioridades da programação de qualquer emissora de radiodifusão: finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas.
Além do critério do tipo de conteúdo, de interesse público, que deve ser priorizado pelas concessionárias, também há normas administrativas e de controle de propriedade das empresas que devem reger a exploração deste serviço. Uma delas, por exemplo, prevista no Código Brasileiro de Telecomunicações, estabelece que 70% do capital votante de uma empresa concessionária de serviço de radiodifusão devem estar nas mãos de brasileiros natos ou naturalizados há mais de dez anos. Outra diz que a transferência da outorga de uma pessoa jurídica para outra depende, para sua validade, de prévia anuência do órgão competente do Poder Executivo – no caso do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC). Há várias mais.
Em se tratando de serviço de rádio, a outorga tem prazo de validade de 10 anos. Para o serviço de TV, a validade é de 15 anos. Findados esses prazos, as empresas prestadoras do serviço podem solicitar a renovação de suas outorgas. Para isso, devem atender a todos os requisitos previstos nas leis e regulamentos que se aplicam ao setor. Do contrário, seu pedido de renovação pode ser negado pelo governo.
O processo, entretanto, não termina aí – como Bolsonaro deu a entender em seu “pronunciamento” virtual. Segundo o Artigo 223 da Constituição, a não-renovação de uma concessão de radiodifusão depende também de duas votações nominais, abertas, do Congresso Nacional (Câmara e Senado juntos) nas quais pelo menos 2/5 dos parlamentares das duas Casas legislativas apoiem a não-renovação. Tamanha façanha nunca aconteceu na história do país. Pelo contrário, a prática tem sido a renovação praticamente automática dessas licenças, sem qualquer análise mais aprofundada do cumprimento do marco regulatório da radiodifusão pelas emissoras. E isso tem se dado tanto pelo Executivo quanto pelo Legislativo.

A caixa-preta das concessões

Saber como se dá ou acompanhar um processo de renovação de uma concessão de rádio e TV é realmente um mistério. Atualmente, há pouquíssima transparência no trâmite desses pedidos – hoje menos ainda do que já houve – e as regras para a exploração das outorgas vem sendo cada vez mais flexibilizadas.
Em uma busca no site do MCTIC, por exemplo, é impossível acessar qualquer informação neste sentido. Na página do Ministério dedicada à radiodifusão comercial não há qualquer conteúdo voltado para o cidadão – tudo é direcionado às empresas concessionárias. Se alguém quiser conhecer, por exemplo, o controle acionário das empresas que prestam este serviço, precisará pesquisar muito em complexos sistemas geridos pela Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações). Alguns deles estão desatualizados e não permitem acompanhar a mudança do controle acionário das empresas.
Desde 2017, após a Medida Provisória 747 editada por Michel Temer, essa mudança só precisa ser autorizada pelo Executivo se representar a transferência total do controle da empresa. Vendas de parte das ações das concessionárias precisam ser meramente informadas… Como mostra o levantamento realizado pelo Intervozes em parceria com a Repórteres Sem Fronteiras sobre “Quem Controla a Mídia no Brasil”, a informação sobre os donos das concessionárias é fundamental para que o cidadão compreenda os interesses por trás da cobertura jornalística e da programação das emissoras.
O mais absurdo da MP de Temer, considerada um verdadeiro presente para os radiodifusores, foi excluir do texto da lei que rege o sistema de comunicação a obrigação de cumprimento de “todas as obrigações legais e contratuais” e o atendimento “ao interesse público” como requisitos para a renovação das outorgas. Ou seja, ficou mais fácil para as empresas perpetuarem seu controle sobre um bem público.
Outro elemento que facilita o jogo das concessionárias é ter uma bancada parlamentar que, no Congresso, apoia seus interesses. Mais fácil ainda quando esta bancada é formada por controladores diretos das empresas de comunicação – algo que, apesar de proibido pela Constituição, em seu Artigo 54, também é prática ignorada solenemente no país. Na atual legislatura, pelo menos 26 deputados e senadores são donos diretos (sem laranjas) de emissoras de rádio e TV no país. Ou seja, nem Executivo nem Legislativo levam em conta as normas constitucionais para a radiodifusão, seja na concessão do serviço, seja em sua renovação.

Só a Globo, presidente?

O Estado fiscalizar se as regras constitucionais, legais e mesmo infralegais estão sendo observadas na prestação do serviço de radiodifusão é essencial para a democracia. É fundamental também para que se impeça o uso político dos processos de outorga ou renovação da concessão.
Quando o presidente fala em ser rígido com a TV Globo em seu pedido de renovação de outorga, algo que deveria valer para todas as empresas vira chantagem política. Ao fazê-lo, Bolsonaro justamente admite que sabe que não há um processo adequado de acompanhamento e verificação das normas e, ao mesmo tempo, defende a aplicação da regulação de acordo com sua vontade particular, de maneira desigual em relação às demais emissoras.
Organizações da sociedade civil como o Intervozes e Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC) defendem há muito tempo mudanças nas regras de renovação das concessões de radiodifusão, para que este seja um processo transparente, baseado na observação do interesse público, no fomento à pluralidade e diversidade de vozes na mídia e no respeito à liberdade de expressão. Tais regras devem ser aplicadas de forma exemplar e igualitária a todos os agentes privados. Qualquer coisa diferente disso, mesmo que por enquanto não passe de ameaça virtual do presidente, tem outro nome: censura.