Em ‘Sorry We Missed You’, o cineasta britânico denuncia o trabalho precário e o colapso social
ROCÍO GARCÍA BEATO
Madri 02 NOV 2019 - 12:43 BRT
Extremamente amável, a elegância e suavidade de Ken Loach contrasta com a firmeza na defesa implacável dos direitos da classe trabalhadora e no olhar sempre emocionado sobre a pessoas anônimas. Em seu cinema não há espaços nem concessões. Aos 83 anos, o diretor volta à carga com Sorry We Missed You, um filme que relata o exaustivo e difícil rotina de uma família — mãe cuidadora de doentes, pai entregador autônomo e dois filhos adolescentes — que tenta sobreviver na selva do livre mercado. Sua exibição no último festival de Cannes causou uma grande comoção, a mesma de quando foi projetado no concurso de San Sebastián, onde conquistou o Prêmio do Público de melhor filme europeu. Sorry We Missed You, escrito novamente com seu braço direito, o roteirista Paul Laverty, estreou quinta-feira nos cinemas espanhóis. Apesar de tudo que seus filmes mostram — entre eles, Chuva de Pedras, Meu Nome é Joe e Eu, Daniel Blake, sua segunda Palma de Ouro —, Ken Loach não é um homem pessimista. Acredita na força dos povos e no futuro da esquerda. “Os povos sempre resistirão. Sempre haverá alguém que lute”, garantiu o cineasta em uma entrevista realizada em setembro em San Sebastián.
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Sorry We Missed You volta o olhar para os entregadores autônomos submetidos a normas draconianas impostas pelas plataformas de comércio eletrônico. O diretor não quer falar de escravidão — “a palavra ‘escravo’ tem outras conotações” —, mas sim de novas e terríveis formas de exploração, consequência da economia de livre mercado. “Apenas uma geração atrás, você tinha um emprego e os empresários obtinham lucros, é claro, mas era um emprego seguro, você podia recorrer aos sindicatos, podia ficar doente porque estava protegido, podia sair de férias e trabalhava oito horas por dia. Seu salário permitia que você vivesse de maneira digna. O que ocorreu, de forma inevitável em uma economia de livre mercado, é que as grandes corporações competem entre si para vender suas mercadorias, e competem com os preços. Como conseguir que o preço seja mais baixo que o da concorrência? Muito simples, pagando menos para os trabalhadores”, reflete. O inglês, nascido em Nuneaton, não acredita que a Internet em si tenha contribuído para esta situação nefasta: “A Internet é uma ferramenta de conhecimento neutro e isso é um grande avanço, mas se for usada para controlar os empregados, como se vê no filme, é um desastre para o trabalhador. Não é um problema da ciência, mas sim de quem controla essa ciência, dos proprietários da tecnologia”.
Embora não considere acabado o Estado de bem-estar na Europa, o cineasta se indigna — sempre de forma tranquila, mas firme — com a falta de recursos públicos para as classes populares e com a maneira como as empresas privadas estão abrindo caminho para se encarregar de serviços que deveriam ser uma atribuição do Estado. “Há dois motivos para a esperança. O primeiro é que os povos sempre resistirão e alguém sempre lutará. O segundo é que vivemos em um sistema que não pode continuar por mais tempo. Pensemos, por exemplo, no trabalho dos entregadores que utilizam gasolina para fazer suas entregas, quando o petróleo tem os dias contados. Estamos destruindo os pequenos comércios nos centros das cidades e dos povoados, encomendando e comprando tudo pela Amazon. Queremos continuar assim?”.
Ken Loach se recusa a se referir a seu cinema no singular, e fala apaixonadamente de todas as histórias maravilhosas que vão sendo descobertas: “Tenho de falar no plural porque sempre trabalho com Paul Laverty. Somos uma equipe, por isso não gosto de falar só de mim. As pessoas que vamos conhecendo na vida são as que nos servem de inspiração. Para onde quer que você olhe, há tantas histórias para contar, e o mais maravilhoso é poder contá-las. Durante a preparação deste filme, conhecemos mulheres que cuidavam de idosos com uma generosidade e um carinho muito maior do que aquilo que lhes pagavam”.
E, como não poderia deixar de ser, a saída do Reino Unido da União Europeia surge na conversa: “O Brexit é absurdo, porque os grandes problemas das pessoas, como o trabalho precário, a pobreza, a insegurança, a falta de moradia e o colapso dos serviços públicos, não serão solucionados. O Brexit é uma distração para não enfrentar os grandes problemas do Reino Unido. É um conflito entre os dois bandos da direita, um que acredita precisar do mercado europeu, e o mais extremo que quer sair da União Europeia para pagar menos impostos e abrir o mercado para os Estados Unidos”.
Caso triunfe o chamado “Brexit duro”, Ken Loach prevê um capitalismo ainda mais desmedido em seu país: “Se sairmos da União Europeia e os conservadores estiverem no poder, o Reino Unido se transformará em um grande mercado de trabalho barato, sem nenhum tipo de regulação, que atrairá investimentos estrangeiros para os serviços públicos. É realmente preocupante. O sistema de saúde poderia cair nas mãos de grandes empresas americanas. Esse é meu maior medo”.
Apesar de tudo, o diretor confia na esquerda de seu país. Diz que é um exemplo para a Europa. “A esquerda britânica é forte e está unida, com um líder, Jeremy Corbyn, totalmente oposto ao que foi Tony Blair, por seu apoio ao sindicalismo e aos investimentos públicos, além de enfrentar o problema do meio ambiente”, destaca. Pela primeira vez em sua vida, confessa que pode falar bem alto e com orgulho: “Sigam o exemplo da Grã-Bretanha. Conseguimos erradicar as divisões da esquerda desde que Corbyn está na liderança [do Partido Trabalhista]. Finalmente [a esquerda] tem a oportunidade de chegar ao poder. Nunca pensei que poderia dizer isto. Precisamos abandonar os egos, aceitar as diferenças e aprender com Lenin, cujo lema era ‘Terra, pão e paz’”