A frase do título é do filósofo marxista húngaro István Mészáros, autor do recém-lançado “A montanha que devemos conquistar – reflexões acerca do Estado” (Boitempo Editorial), e expressa de forma contundente uma percepção que compartilho. Daí meu interesse pelo lançamento do livro, motivo também para aexcelente entrevista ao repórter Leonardo Cazes. Há em Mészáros um debate pertinente e difícil acerca do papel do Estado nas sociedades contemporâneas. A montanha a ser conquistada – que dá título ao livro – é o Estado, na sua avaliação até hoje capturado pelos interesses do capital, cujo resultado é o “agravamento das condições [de vida] em todos os lugares, com políticas de austeridade impostas impiedosamente pelos governos capitalistas sobre a população trabalhadora, mesmo nos países avançados mais ricos em termos de capitalistas”.
Conquistar o Estado pode parecer uma velha proposição socialista, cujo fim estaria anunciado pelo menos desde a queda do muro de Berlim, nos idos do século passado (sei que só se passaram pouco mais de 25 anos, mas em termos de tempo histórico, 1989 parece estar muito mais longe). Não é. A conquista do Estado proposta por Mészáros tem menos a ver com a nostalgia de um estado socialista e mais a ver com um dos pontos centrais do livro: sempre que houve Estado, foi a serviço dos interesses do capital. Conquistar o Estado, então, passa a ser condição fundamental para a transformação dos modelos políticos e econômicos atuais.
Na proposta de Mészáros, a luta pelo Estado estaria a serviço da sua proposta de democracia substantiva, associada à igualdade substantiva. Ambas passam por um tema que me interessa particularmente: a questão do uso do tempo. Se no sistema capitalista o imperativo econômico é o do acúmulo, na proposta de igualdade substantiva de Mészáros seria preciso abandonar a ideia de produção para acumulação pela “adoção consciente do tempo disponível como regulador geral da produção”. Por isso, ele propõe uma redução da jornada de trabalho que poderia funcionar como “dinamite social”, reorganizando o trabalho tanto no sentido quantitativo – aquele que é medido em horas – quanto no sentido qualitativo – medido pela intensidade. Trabalhar em função de “metas autodeterminadas de realização da vida dos indivíduos particulares, cujo tempo disponível deve prevalecer para os objetivos escolhidos com base em sua igualdade substantiva” pode parecer absolutamente utópico, mas é proposto por Mészáros como forma de resistência às crescentes exigências do capital, como solução para o “desemprego estrutural” e como atenuante para a crise ambiental que nos ameaça.
Ingênuo? Talvez. Mas considerando, por exemplo, as críticas de David Harvey, de Richard Sennett, de Luc Boltanski – para mencionar apenas alguns – em relação aouso total do tempo do trabalhador a partir das transformações no modo de produção capitalista, pode-se considerar que de fato Mészáros tem um ponto. Trabalhar o suficiente – sendo a definição de suficiente dada pelo trabalhador – poderia ser uma inversão no jogo da exploração capitalista.
Não acho que caberia aqui entrar no debate de como colocar isso em prática, ainda que o autor desça a detalhes e proponha que o Estado se torne uma instância reguladora deste tipo de demanda substantiva. Penso, no entanto, que há qualidade na proposição de Mészáros na medida em que a regulação do uso do tempo poderia alterar relações trabalhistas, sociais e familiares, promovendo igualdade, por exemplo, nas relações entre os casais na divisão das tarefas domésticas e no cuidado com os filhos e os idosos, atividades que, enquanto forem tidas como não lucrativas pelo sistema capitalista, continuarão a ser realizadas sem que se altere o tempo dedicado ao trabalho.
Há, no entanto, algo no livro de Mészáros que me inquieta: ele é mais um autor do campo da esquerda pautado pela necessidade de repensar a democracia liberal. Do meu ponto de vista, nisso já reside uma vitória da democracia liberal: pautar o debate político em torno da democracia como única forma de governo, o que de certa forma fecha as possibilidades do debate. Explico: desde que Francis Fukuyama publicou “O fim da história e o último homem”, no final dos anos 1980, multiplicam-se os discursos de que a democracia liberal, tal qual experimentada nos EUA, é a forma final de governo humano, e toda a história do mundo teria nos orientado a essa forma de governo, ao livre mercado como forma mais natural de organização econômica, e ao capitalismo como o triunfo ao comunismo ou ao socialismo. Com essas supostas conquistas, estaríamos enfim livres das guerras – que teriam girado em torno da disputa entre capitalismo e socialismo – e poderíamos nos acomodar em um pacífico estilo de vida liberal democrata.
Nada mais falso. No entanto, para encerrar retomando a minha inquietação, há nesses discursos a força de pautar o debate exclusivamente em torno do aprimoramento da democracia. Nesse sentido, temos a democracia deliberativa, em Jünger Habermas; democracia direta, em Norberto Bobbio; democracia porvir, em Jacques Derrida; democracia agonística, em Ernest Laclau e Chantal Mouffe; e agora democracia substantiva, em Mészáros. Poucos foram os que resistiram a elaborar uma proposta em torno do ideal democrático sem fazer a esse ideal uma crítica.
Embora todas tenham seus méritos e partam de diagnósticos importantes, são autores que se mantêm, de certa forma, reforçando a ideia de que a democracia existe enquanto tal. Derrida é um dos que avançam tanto na crítica ao fim da história quanto na desconstrução da ideia de que uma democracia possível é uma democracia sempre em dívida, capaz de se reconhecer incompleta. Mas nessa direção é outro filósofo franco-argelino, Jacques Rancière, que me parece dar uma importante contribuição ao debate político contemporâneo quando afirma que a democracia representativa não passa de um mecanismo de manutenção, no poder, de representantes da oligarquia política e econômica que se perpetua a partir do estabelecimento de uma pauta de seus próprios interesses. Se a democracia só se repete como farsa, vem daí a contundência da frase de Mészáros: “A barbárie se tivermos sorte”.
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Carla Rodrigues exerceu a profissão de jornalista durante tantos anos que prefere não somar. Fez especialização, mestrado, doutorado em Filosofia na PUC-Rio e pós-doutorado na Unicamp. Hoje é professora do Departamento de Filosofia da UFRJ e uma das coordenadora do Khôra - laboratório de filosofias da alteridade. Dedica-se a pesquisar o pensamento do filósofo Jacques Derrida.
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