terça-feira, 6 de março de 2018

O idiota tecnológico: uma estratégia para a manutenção do capitalismo

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A tecnologia não serve para mudar a sociedade, apesar de o senso comum acreditar nessa ideia e de muitos comerciais usarem a palavra “revolução” para anunciar seus produtos
Nossa resposta aos meios e veículos de comunicação – ou seja, o que conta é o modo como são usados – tem muito da postura alvar do idiota tecnológico.
Marshall McLuhan.

Aparentemente parece ser complicado começar pelo fim, mas não é. Aliás, foi o matemático polonês Polya que disse: “Comece pelo fim!”. Esse conselho nos fez começar pelo último parágrafo de um artigo escrito por Adauto Novaes para o Le Monde Diplomatique Brasil: “Assim, com as promessas da ciência da técnica que jamais se realizam (sempre uma espera), o progresso entra em eterno processo, linear e infinito, mas também mecânico e circular, criando as próprias condições de perpetuação”. Assim, hoje a tecnologia se tornou uma espécie de aparelho ideológico do Estado que funciona mais ou menos como a Igreja em tempos medievais que, por meio da promessa do paraíso, mantinha o controle dos indivíduos reproduzindo incessantemente os mecanismos tradicionais de dominação.
O filme O círculo, estrelado por Emma Thompson e Tom Hanks, é exemplar para ilustrar essa questão. Uma mega corporação constrói uma câmera no formato de uma pequena bola de silicone que consegue a proeza de transmitir imagens (entre outras funcionalidades) via satélite. Ela pode ser colocada em qualquer lugar sem que o indivíduo que esteja sendo vigiado perceba. O discurso criado em torno do aparelho assevera a utilidade da nova tecnologia para caçar fugitivos da polícia, encontrar pessoas desaparecidas etc. “Não há mais esconderijos para os terroristas”, diz o diretor da empresa. No fim, a moral do filme traz à tona a ideia instigante de que a vigilância é um problema quando aqueles que vigiam passam a ser os vigiados. Eles não aceitariam isso jamais.
Hollywood é sempre superficial em roteiros que poderiam ser explorados mais profundamente. Seria interessante se, por exemplo, nos perguntássemos qual seria “realmente” a utilidade desse tipo de tecnologia para as nossas vidas? Trocar informações com grande velocidade, imagens com alta definição, vídeos em tempo real compartilhados, etc., estão contribuindo para no projeto de construção de uma sociedade melhor? A proposta iluminista que encara o conhecimento como uma ferramenta para se alcançar a felicidade mediante a destituição da ignorância ficou apenas no discurso? Discurso que, por sua vez, embora cada vez mais pálido pelo culto excessivo da prática, é mantido para a permanência das relações capitalistas de produção?

O cotidiano cibernético
A tecnologia não serve para mudar a sociedade, apesar de o senso comum acreditar nessa ideia e de muitos comerciais usarem a palavra “revolução” para anunciar seus produtos. Uma técnica é fruto de uma cultura e, no máximo, condiciona uma sociedade, jamais a determina, nos mostra Pierre Levy.[1] Não podemos dizer que a invenção da imprensa determinou as Reformas Religiosas, mas sem dúvida contribuiu para o seu andamento.
A Revolução Tecnológica (uma revolução que se resume em si mesma) atual tem início nos anos 1970 com a invenção do microprocessador. No entanto, essa foi a época do ressurgimento do capitalismo que, por sua vez, buscava fórmulas para solucionar sua mais recente crise. Ou seja, como destaca Manuel Castells, “a nova sociedade emergente desse processo de transformação é capitalista e também informacional”.[2]
Por isso, é necessário repetir que a tecnologia é fruto da sociedade, da cultura na qual é produzida, jamais o oposto disso. O capitalismo modelou o tipo de tecnologia que excita os jovens de hoje. Nossa cultura narcisista e individualista vai se preocupar em desenvolver técnicas que a fortaleça. Todo dia um novo produto para o mesmo uso, e assim vamos nos (in)satisfazendo. Mercadorias cada vez mais “modernas” para se usar em casa, “na comodidade do lar”. Até a cura para as doenças acaba sendo em escala individual, a não ser que seja de interesse das classes dominantes usá-la para conter um surto que poderia prejudicar a quantidade de suas vendas, ou quando inventa novos transtornos para vender seus psicotrópicos.
Por outro lado, as pessoas usam seus equipamentos tecnológicos, que podem guardar nos bolsos, para compartilhar o seu cotidiano, não para alterá-lo, ou refletir sobre ele. Nas favelas, as crianças compartilham as torturas que traficantes empreendem para punir um devedor ou um X-9 (dedo-duro, no código das comunidades cariocas). A classe média compartilha a tortura de policiais ou vídeos pornográficos pelo whattsapp. Cada nicho social usa a tecnologia para compartilhar seu próprio cotidiano, nada mais. Na internet há um mundo, mas os indivíduos só acessam o que está relacionado ao seu dia a dia. O “conhecimento” de sua realidade é ampliado. Pesquisa-se no Youtube maneiras de fazer comida ou de como se instalar um chuveiro, mas não vai além disso. Não há evolução nem progresso de nada no mundo real, tudo insiste em permanecer igual por meio de novas técnicas virtuais. É o cotidiano cibernético.
O vislumbre que temos pela tecnologia é, em parte, alimentado pela ficção científica que torna possível as hipóteses da física teórica por meio de viagens interestelares, onde a vida extraterrestre e a viagem no tempo fomentam o imaginário moderno. Mas não é muito diferente dos viajantes que desvendavam terras desconhecidas nos finais da Idade Média. Diversos elementos do imaginário tornavam-se possíveis (como monstros e lugares encantados), e temos, como prova disso, os relatos maravilhosos de diversos exploradores.
Foi pela internet que o subcomandante Marcos, líder dos zapatistas de Chiapas, comunicou-se com o mundo e com a mídia, do interior da floresta de Lacandon. Ela também serviu para reunir multidões em Seattle em 1999 e no Cairo em 2010. Mas a cultura da convergência é fragmentária, tornando a revolta eufórica, efêmera, como a natureza da sociedade que construiu o ciberespaço. Além disso, as corporações da mídia ainda possuem uma grande força, pois temos acesso ao subcomandante Marcos, às Farcs (quando eram guerrilhas) ou à realidade da Venezuela, mas nada supera a interpretação dos grandes conglomerados midiáticos sobre esses movimentos. O acesso a múltiplas realidades é algo real, mas o que está entre nós e elas é o que deve ser pensado. O ser humano é disciplinado a ver somente aquilo que quer ver. O consumidor pode encontrar o que quiser na web, mas o que desperta nele o desejo pela procura? E mais, o que ele produz com o que consome (pergunta chave para compreender a obra do historiador Michel de Certeau, “A invenção do cotidiano”)?
Por isso, da maneira como se constitui na atualidade, a tecnologia não tem nada de revolucionária, a não ser para resolver seus próprios problemas (e os do capitalismo). Ela está mais preocupada em superar as barreiras entre o público e o privado do que diminuir as desigualdades sociais do mundo. Está preocupada em compartilhar o cotidiano, uma característica da sociedade de consumo, que se excita muito mais em exibir as coisas que compra que na utilidade prática das mesmas.
Há uma necessidade de discutir o uso social da tecnologia. Não digo isso no sentido da sociedade de risco, como o faz a série Black Mirror, onde vira-se as costas para os conflitos de classe que o lixo tecnológico fomenta. Milhões são gastos para desenvolver tablets e celulares, não só em sua produção, mas – no que é pior – na sua propaganda, nas formas de convencimento que juram ser fundamental eu ter um aparelho de celular que custa R$ 4 mil. E há pessoas que se engalfinham em filas por isso…

*Raphael Silva Fagundes é doutorando em História Política da Uerj e professor da rede municipal do Rio de Janeiro e de Itaguaí.
[1] LEVY, Pierre. Cibercultura. São Paulo: Ed 34, 1999, p.26
[2] CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2011, v.1, p.43.

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