INTERVOZES
Globo deve observar regras de renovação de concessão, assim como todas as outras emissoras de radiodifusão. Só que isso nunca aconteceu…
A live em que o presidente Jair Bolsonaro reage à reportagem do Jornal Nacional, da Rede Globo, veiculada no último dia 29, incluindo seu nome entre os citados na investigação do assassinato da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes, ocupou timelines e hashtags. E suscitou um debate fundamental de ser retomado no país – ainda que não pelas mesmas razões apresentadas pelo chefe do Executivo: a renovação das outorgas de radiodifusão no país.
Como é sabido, as emissoras de rádio e TV utilizam o espectro eletromagnético, um bem escasso e público, para suas transmissões. Prestam, assim, um serviço público mediante concessão do Estado brasileiro. De acordo com o Artigo 221 da nossa Constituição Federal, quatro devem ser as prioridades da programação de qualquer emissora de radiodifusão: finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas.
Além do critério do tipo de conteúdo, de interesse público, que deve ser priorizado pelas concessionárias, também há normas administrativas e de controle de propriedade das empresas que devem reger a exploração deste serviço. Uma delas, por exemplo, prevista no Código Brasileiro de Telecomunicações, estabelece que 70% do capital votante de uma empresa concessionária de serviço de radiodifusão devem estar nas mãos de brasileiros natos ou naturalizados há mais de dez anos. Outra diz que a transferência da outorga de uma pessoa jurídica para outra depende, para sua validade, de prévia anuência do órgão competente do Poder Executivo – no caso do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC). Há várias mais.
O processo, entretanto, não termina aí – como Bolsonaro deu a entender em seu “pronunciamento” virtual. Segundo o Artigo 223 da Constituição, a não-renovação de uma concessão de radiodifusão depende também de duas votações nominais, abertas, do Congresso Nacional (Câmara e Senado juntos) nas quais pelo menos 2/5 dos parlamentares das duas Casas legislativas apoiem a não-renovação. Tamanha façanha nunca aconteceu na história do país. Pelo contrário, a prática tem sido a renovação praticamente automática dessas licenças, sem qualquer análise mais aprofundada do cumprimento do marco regulatório da radiodifusão pelas emissoras. E isso tem se dado tanto pelo Executivo quanto pelo Legislativo.
A caixa-preta das concessões
Saber como se dá ou acompanhar um processo de renovação de uma concessão de rádio e TV é realmente um mistério. Atualmente, há pouquíssima transparência no trâmite desses pedidos – hoje menos ainda do que já houve – e as regras para a exploração das outorgas vem sendo cada vez mais flexibilizadas.
Em uma busca no site do MCTIC, por exemplo, é impossível acessar qualquer informação neste sentido. Na página do Ministério dedicada à radiodifusão comercial não há qualquer conteúdo voltado para o cidadão – tudo é direcionado às empresas concessionárias. Se alguém quiser conhecer, por exemplo, o controle acionário das empresas que prestam este serviço, precisará pesquisar muito em complexos sistemas geridos pela Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações). Alguns deles estão desatualizados e não permitem acompanhar a mudança do controle acionário das empresas.
Desde 2017, após a Medida Provisória 747 editada por Michel Temer, essa mudança só precisa ser autorizada pelo Executivo se representar a transferência total do controle da empresa. Vendas de parte das ações das concessionárias precisam ser meramente informadas… Como mostra o levantamento realizado pelo Intervozes em parceria com a Repórteres Sem Fronteiras sobre “Quem Controla a Mídia no Brasil”, a informação sobre os donos das concessionárias é fundamental para que o cidadão compreenda os interesses por trás da cobertura jornalística e da programação das emissoras.
O mais absurdo da MP de Temer, considerada um verdadeiro presente para os radiodifusores, foi excluir do texto da lei que rege o sistema de comunicação a obrigação de cumprimento de “todas as obrigações legais e contratuais” e o atendimento “ao interesse público” como requisitos para a renovação das outorgas. Ou seja, ficou mais fácil para as empresas perpetuarem seu controle sobre um bem público.
Só a Globo, presidente?
O Estado fiscalizar se as regras constitucionais, legais e mesmo infralegais estão sendo observadas na prestação do serviço de radiodifusão é essencial para a democracia. É fundamental também para que se impeça o uso político dos processos de outorga ou renovação da concessão.
Quando o presidente fala em ser rígido com a TV Globo em seu pedido de renovação de outorga, algo que deveria valer para todas as empresas vira chantagem política. Ao fazê-lo, Bolsonaro justamente admite que sabe que não há um processo adequado de acompanhamento e verificação das normas e, ao mesmo tempo, defende a aplicação da regulação de acordo com sua vontade particular, de maneira desigual em relação às demais emissoras.
Organizações da sociedade civil como o Intervozes e Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC) defendem há muito tempo mudanças nas regras de renovação das concessões de radiodifusão, para que este seja um processo transparente, baseado na observação do interesse público, no fomento à pluralidade e diversidade de vozes na mídia e no respeito à liberdade de expressão. Tais regras devem ser aplicadas de forma exemplar e igualitária a todos os agentes privados. Qualquer coisa diferente disso, mesmo que por enquanto não passe de ameaça virtual do presidente, tem outro nome: censura.
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