A mais recente versão do PL 2.630, relatada pelo senador Ângelo Coronel, contém alguns avanços em relação às versões anteriores mas ainda reúne uma soma de muitos problemas. Não se trata mais de um projeto para "combater desinformação" conforme se definiam as versões anteriores. É um avanço pelo simples motivo de que, não sendo possível dar uma definição positiva de "desinformação", qualquer lei, a partir daí, seria, na melhor das hipóteses, inócua, na pior, atrabiliária.
Excluindo esse ponto, começam as dificuldades. Há uma enorme resistência entre os pensadores e formuladores de políticas para a internet em reconhecer que o problema não está em seus usuários, mas nos seus intermediários. E, mais que isto, o problema não está na internet propriamente dita, mas nas plataformas sociodigitais, vulgo "redes sociais", que funcionam sobre a internet.
A internet, em si, é um sistema tecnológico que permite conectar, através de equipamentos e protocolos próprios, dois ou muitos pontos em interação. Sobre esse sistema, nas duas últimas décadas, montaram-se poderosas empresas, ditas "plataformas", que passaram literalmente a organizar e comandar essa interação com finalidades comerciais e lucrativas. Em princípio, numa economia capitalista, não deve haver nada contra o comércio e o lucro. Mas como a sociedade não vive só de comércio e lucro, qualquer atividade econômica está submetida a algum tipo de regulação. Até a loja da esquina precisa, no mínimo, de um alvará da prefeitura para funcionar. Mas o YouTube, o Facebook, o WhatsApp funcionam sem terem pedido qualquer licença para isso...
Quando se fala de uma enorme "loja" frequentada corriqueiramente por cerca de 2 bilhões de pessoas em todo o mundo, ou cerca de 50 a 100 milhões no Brasil, não estamos mais falando da loja da esquina, sequer do conjunto de lojas reunidas num centro comercial. Estamos falando de uma grande cidade, quiçá de um país. As plataformas tornaram-se isso. Nós todos nos encontramos dentro da internet, ou melhor, dentro das suas plataformas, desde o momento em que acordamos e ligamos nossos celulares até o momento em que vamos dormir (isto, se desligarmos os celulares...), assim como também nos encontramos dentro da cidade, mesmo se estivermos guardando distanciamento social sem sair de casa. Por isso, se a vida na cidade é organizada através de suas muitas regulações, inclusive, sublinhemos, as leis de trânsito, a vida nas plataformas (não, na internet) precisa ser também regulada.
Por enquanto, são as plataformas que estão regulando as nossas vidas. Secretamente, opacamente, os seus algoritmos orientam, sem que percebamos, muitas das nossas decisões cotidianas e vigiam – sim, vigiam – cada um de nossos passos. Chega a ser curioso essa gritaria contra o "vigilantismo" quando o maior poder vigilante na nossa sociedade, hoje em dia, é este exercido pelas plataformas. Já existe mesmo farta literatura acadêmica sobre isso. A lei, pois, deve ir para cima delas, não do cidadão.
É mais do que sabido que YouTube, Twitter, Facebook censuram conteúdos. Não é sabido com quais critérios mas, basicamente, eles têm compromissos com os seus anunciantes e, volta e meia, algum conteúdo pode desagradar, por motivos éticos ou outros, a algum anunciante. No momento, porém, que uma empresa de comunicação se põe na condição de filtrar conteúdos que por ela trafegam, essa empresa deixou de ser mero provedor de acesso, tornou-se, por definição, empresa editora. E, no caso, editora por via de algoritmos, sequer por decisão humana...
Reconheçamos, porém, há outra ponta. Um exemplo. Circula pelas plataformas, sem nenhum filtro ou censura, "notícia" de que os hospitais estão matando pacientes, dizendo que morrem de Covid, para vender os seus órgãos. É evidente e odiosa mentira. O objetivo é criar convulsão social. Isto é crime. Se não o for legalmente, deveria passar a ser. Quem replica pode ser facilmente identificado. A fonte original talvez também possa. As plataformas não somente podem rastrear a difusão de mensagens criminosas como podem simplesmente suprimi-las, eliminá-las, de todos os seus servidores, em todo o mundo. A lei, pois, além de muitos outros aspectos necessários à regulação político-econômica dessas plataformas monopolistas estrangeiras, deveria estabelecer muito claramente que elas estão obrigadas a colaborar com as autoridades brasileiras na identificação, rastreamento e punição de atividades criminosas, aqui incluídas as mentiras que visam a desconstituir as autoridades legítimas num estado democrático de direito. Para tanto, não será necessário cadastrar usuário nem quebrar criptografia. A tecnologia da internet permite, muito bem, às organizações que administram os seus caminhos físicos, isto é, as plataformas, identificar a rota percorrida por qualquer mensagem. Mesmo que essa mensagem tenha tido origem no... Casaquistão.
Marcos Dantas é professor titular da Escola de Comunicação da UFRJ é conselheiro do Comitê Gestor da Internet no Brasil
https://oglobo.globo.com/opiniao/para-alem-das-fake-news-24494678
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