29 de julho de 2011 às 7:21
Exagerando um pouquinho, poderíamos dizer que a publicação de Dos meios às mediações: Comunicação, cultura e hegemonia (1986), do espanhol radicado na Colômbia Jesús Martín-Barbero, marca a derrota definitiva da Escola de Frankfurt nos debates sobre mídia e comunicação na América Latina. Amplamente dominante nos anos sessenta e setenta, a teoria frankfurtiana trabalhava a mídia como um instrumento de manipulação no interior da sociedade administrada. Essa teoria foi exposta principalmente no texto de Theodor Adorno e Max Horkheimer, de 1947, “A Indústria Cultural”, capítulo mais célebre da Dialética da Ilustração. Sua característica mais visível é a ausência de matizes. A indústria cultural seria um operador da alienação no qual desapareceriam os limites entre arte e entretenimento, e a produção cultural seria colocada, sempre e invariavelmente, a serviço do fascismo. As análises de Adorno sobre o cinema e o jazz—hoje em dia consideradas pouco mais que diatribes mal informadas—foram a coroação desse paradigma. O representante mais ilustre da teoria na América Latina foi o livroPara ler o Pato Donald, de Ariel Dorfman e Armand Mattelart, mas seus seus ecos ainda se fazem ouvir em boa parte do que se escreve sobre mídia hoje em dia.
A obra de Jesús Martín-Barbero é, ao mesmo tempo, um estudo teórico e histórico da invenção do popular e do massivo, assim como das interrelações entre eles. A premissa é relativamente simples e vem de pensadores como Bakhtin, Gramsci e Benjamin: nem toda absorção do hegemônico pelo subalterno é sinal de submissão e nem toda recusa é sinal de resistência. A demonização das formas massivas de cultura, no paradigma frankfurtiano e em seus herdeiros, depende de uma separação taxativa entre o massivo e o popular. Para que se apresentem as formas industriais, mediatizadas de cultura como instâncias de alienação é necessário separá-las categoricamente das formas de cultura entendidas como genuinamente populares. Assim, cinema e televisão são arrolados como manipulação midiática enquanto que a literatura de cordel e a viola caipira permanecem como manifestação cultural legítima. É essa separação que Jesús Martín-Barbero demole pacientemente, com argumentos teóricos e históricos.
Em primeiro lugar, a invenção do massivo, apesar de dar um salto gigantesco com as formas técnicas de reprodução da imagem e do som no século XX, tem seus precursores na própria escrita popular. Desde pelo menos 1790, especialmente na França e na Inglaterra, a emergência do melodrama confere o vértice ao processo que leva do popular ao massivo. Trata-se de um processo que se remonta à Revolução Francesa: a transformação da canalha, do populacho, em povo, e a cenografia dessa representação. A funcionalização da música e a fabricação dos efeitos sonoros, que depois encontrariam na telenovela o seu auge, têm no melodrama a sua origem. O melodrama realiza uma secularização da figura do Diabo (personagem frequente nos dramas medieval e barroco), transformando-o em aristocrata malvado, burguês megalômano ou até mesmo em clérigo corrompido. O gritos e gemidos descompostos, as violentas contorções, os gestos descompassados: toda essa gestualidade melodramática que, ao ser trasladada para o rádio e o cinema, será inicialmente lida como mera estratégia comercial, estava, com efeito, enraizada na proibição da palavra nas representações populares.
Da mesma forma, a chegada dos mecanismos massivos de representação à América Latina não pode ser estudada, argumenta Martín-Barbero, fora do contexto de emergência de um populismo que interpela as massas trabalhadoras, propondo um sistema novo de reconhecimento dos atributos do trabalhador. No cinema mexicano, por exemplo, auge do cinema popular latino-americano, Martín-Barbero vê a reelaboração de uma épica popular, na qual a figura de Pancho Villa é reescrita via mito bandoleirista que combina crueldade e generosidade. Também no rádio-teatro, onde os argentinos, sem dúvida, foram mais longe, Martín-Barbero vê uma série de vínculos com uma longa tradição de expressões da cultura popular.
A passagem dos “meios” às “mediações” teria, então, este sentido: passar de uma análise em que os dispositivos são simples meios para se realizar alienação num público passivo para um modelo de análise em que a hegemonia transforma de dentro o sentido do trabalho e da vida da comunidade. Não se pode, em outras palavras, fazer uma apreciação das mensagens da mídia sem uma análise real do que acontece na recepção dessas mensagens, que nunca é simplesmente passiva e consumidora. É óbvio que isso não significa que essas mensagens devam estar imunes à crítica. Todo o contrário. Mas é simplista tratá-las fora do contexto no qual emergem e dissociadas dos usos a que as submetem seus receptores. As discussões sobre mídia que atualmente têm lugar no Brasil lucrariam muito fazendo referência à obra de Martín-Barbero e questionando o paradigma simplista da alienação e da manipulação cuja decadência essa obra emblematiza mais que qualquer outra.
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