Blog do Marceu Vieira
Publicado em 12 de fevereiro de 2016
Marceu Vieira
Descubro, surpreso, que, a exemplo do “Jornal do Brasil”, a querida “Tribuna da Imprensa”, onde minha história particular no jornalismo começou, ainda existe em versão on line. Apenas se suicidou no papel, ou foi suicidada, também como o velho JB.
Lembro que me entristeceu muito a notícia de que a “Tribuna” deixaria de circular. Foi no antigo jornal da Rua do Lavradio, na Lapa, que cometi meu primeiro lide. Era 1986, e eu, moleque ainda, subi aquela escada de madeira muito íngreme em busca de um estágio.
Fui recebido pelo Joaquim, chefe dele mesmo no setor de pesquisa, onde era o único funcionário. Joaquim, se minha memória não apronta desfeita, usava colares de umbanda e tinha a cara enfezada.
Contei minha história, disse que, sem o estágio, não conseguiria me formar na faculdade – eu estudava no Instituto de Arte e Comunicação Social, Iacs, da UFF – e pedi que me ajudasse.
Começava como editor-chefe naquele mesmo dia o grande jornalista Ricardo Gontijo. Joaquim, talvez tocado pela minha cara de andorinha molhada recém-pousada de um voo acidentado desde Morro Agudo, combinou de me apresentar como um afilhado ao Gontijo.
– Como é o teu nome? – perguntou.
– Marceu – respondi.
Esperei em silêncio no terceiro andar, num ambiente apinhado de jornais velhos que recendiam a mofo e a História. Joaquim foi almoçar, e fiquei ali, olhando tudo e sem tocar em nada, a não ser no embrulho do queijo quente feito em pão francês, já frio àquela altura, que eu havia comprado no botequim lá de baixo, o Boteco do Sabará, sujeito boa-praça, tão retinto quanto vascaíno, de quem eu viria a gostar tanto.
Quando o Joaquim voltou, e o Gontijo finalmente chegou para seu primeiro dia de trabalho, o meu “padrinho” me levou até ele, no segundo andar, onde ficava a redação, e disse, com seu vozeirão e sua moral de empregado mais antigo:
– Seu Gontijo, este aqui é meu afilhado, o… o… o…
– …Marceu… – cochichei.
– …meu afilhado Perceu! Ele precisa de estágio.
– …Marceu… – sussurrei de novo.
– Isso, o Alfeu! Não, o Alceu, quer dizer, o Morfeu! Ele precisa de estágio.
Depois de mais alguma espera, fui mandado para a rua com uma repórter bem bonita (não lembro agora o nome dela, mas o rosto, sim), e foi assim, com uma matéria nunca publicada sobre uma greve do metrô, que consegui minha primeira ocupação no jornalismo.
Na “Tribuna”, conheci gente que, até hoje, é referência pra mim. Tarso de Castro, que de colunista se tornaria editor-chefe no lugar do Gontijo, me apresentou a um Rio glamouroso que eu não conhecia. Iza Freaza, hoje Iza Salles, apostou em mim como um dos primeiros repórteres do suplemento “Tribuna Bis”. José Trajano, querido chefe, me fez, com meu coração rubro-negro, gostar ainda mais do seu América Futebol Clube. Teixeira Heizer, cracaço do texto e do bom senso, me deu lições de estética e ética que guardo para sempre.
Paulo Sérgio, com seu mau humor, tentou corrigir meus defeitos de repórter iniciante – e, claro, não conseguiu. Ramiro Alves viraria meu amigo da vida inteira. Celso de Castro Barbosa, idem. Vladimir Porfírio, meu irmão querido, também. Maurício Fonseca é mais um. As irmãs Lídia e Beth Pena, outras. Palmério Dória, Cosme Coelho, Paulino Senra, Venerando Martins, Carlos Ramos, Lilian Newlands, Deborah Dumar, Regina Perez, Ana Carvalho, Robertão Porto, Carla Rodrigues, os fotógrafos Alcyr Cavalcanti, Jorge I, Jorge II, Jorge Nunes e Marcus Vinícius, Continentino Porto, Hudson Carvalho, Juçara Braga, Geraldo Lopes, Arthur Parahyba, Antônio Caetano, os caricaturistas Jane e Marcelo, Argemiro Ferreira, o fabuloso Bertoldo, os velhos Napoleão e Aragão, Fábio Grecchi, tanta gente…
A começar pelo Helinho Fernandes, que assinou minha primeira carteira de trabalho na profissão e me mandou para uma temporada de um ano em Brasília, onde morei de favor na casa do amigo e baita repórter Jorge Oliveira, fui foca na Constituinte de 1988 e tive a alegria de fazer entrevistas longas (que adoraria recuperar) com políticos como o então também foca Lula, em seu primeiro e único mandato de deputado, o já emplumado e já famoso FH, Mário Covas, José Richa, Eduardo Suplicy e outros.
Nunca vou me esquecer dessas pessoas. Nunca vou me esquecer da “Tribuna”.
Pela “Tribuna”, entrevistei Luís Carlos Prestes num 1° de Maio na Quinta da Boa Vista e ganhei dele um livro autografado. Pela “Tribuna”, vi Leandro, maior lateral-direito do Flamengo, do Brasil e do mundo em todos os tempos, meter um golaço no ângulo de Paulo Victor num Fla-Flu. Pela “Tribuna”, assisti à tragédia do incêndio no Edifício Andorinha. Jamais vou esquecer.
Como também nunca vou conseguir me esquecer do “Jornal do Brasil”. Recordo que estava na África do Sul, em 2010, pelo “Globo”, quando li pela internet a notícia de que o JB de papel iria acabar.
Passei no JB os dias mais felizes da minha vida profissional. Passei no JB também os dias mais tristes. Foram oito anos. Oito anos tão intensos, divididos em dois períodos de quatro, que, na minha memória afetiva, pareceram bem mais de oito. Pareceram uma vida toda. Ainda parecem.
Quatro dias foram os mais marcantes da minha carreira de jornalista. Dois foram os mais felizes. Dois, os mais tristes. O primeiro mais feliz foi o da minha chegada ao JB, em 1988, se não me engano. O segundo foi o da minha volta, em 1994. O segundo mais triste foi o da minha primeira saída, em 1991. O mais triste de todos foi o da minha despedida para sempre, em 1998.
Talvez nada que eu ainda possa fazer nos anos que me restam na profissão marque tanto a minha carreira quanto os oito de JB. Eu gostava tanto daquela casa que, na minha neuropatia amorosa de jovem repórter, imaginava não haver ninguém que a amasse tanto. Nem seus donos.
Pelo JB, fui a Ouricuri, nos cafundós de Pernambuco, e entrevistei uma senhorinha que, nos fundos de seu quintal de chão rachado pela seca, administrava um cemitério particular. Era o cemitério informal de seus próprios filhos natimortos. Um quintal espetado por umas 15 cruzes, nenhuma delas amparada em atestado de óbito. Um Brasil que o Brasil jamais registrou. Como testemunha, estava comigo o grande repórter-fotográfico Tasso Marcelo.
Pelo JB, passei um mês na Floresta Amazônica à espera de uma epidemia de cólera que nunca chegou.
Pelo JB, em 1990, numa viagem a Porto Alegre, entrevistei Alceu Colares, então candidato ao governo gaúcho, num momento em que caía nas pesquisas depois de, em plena campanha, ter trocado a mulher negra por uma loura um pouco mais jovem, a quem a língua má da oposição chamava de “Xuxa”.
Colares chorou na entrevista, e o choro descrito e retratado na reportagem ganhou uma dimensão enorme em seu estado, e seu pranto queixoso de preconceito ecoou no Rio Grande do Sul, e o “Doutor Negrão”, como era conhecido por lá, voltou a subir nas pesquisas para vencer o direitista Nelson Marchesan.
Pelo JB, descobri uma praia deserta no Rio, onde Brizola, então governador, havia se refugiado para meditar e, em certa ocasião, levado seu amigo Mário Soares, socialista português, ali presidente de seu país. Brizola ia até lá de helicóptero, único meio de transporte possível até o refúgio.
Pelo JB, apresentei ao Rio e ao Brasil um botequim de Copacabana chamado Bip Bip.
Pelo JB, subi e desci todos os andares do Edifício Chopin, em Copacabana, num pós-réveillon, para um relato pretensiosamente antropológico da então riqueza decadente do Rio.
Pelo JB, ajudei a acrescentar linhas nas biografias do próprio Brizola, do Collor, do Lula, do FH, do Cesar Maia, do Marcello Alencar, do Moreira Franco, tantos outros políticos que ainda estão por aí ou já se foram.
Pelo JB, trabalhei quase 24 horas seguidas no dia em que o corpo de Tom Jobim chegou ao Brasil, em dezembro de 1994.
Pelo JB, tantas coisas.
No JB, tive a alegria de escrever no espaço que um dia havia sido de Castellinho. Saudade.
Por causa do JB, conheci Betinho, e muito escrevi sobre ele, seu calvário e sua morte. Saudade também.
Saudade do “200 no lugar da 20”, jargão de retrancas que só quem trabalhou lá pode entender. Saudade do quadrado de memória nas páginas de política, das minhas interinidades no “Informe JB” do meu guru eterno Ancelmo Gois.
Saudade de assistir ao amanhecer num boteco infame da Leopoldina depois das madrugadas de “pescoção”, saudade do pôr do sol em São Cristóvão, o mais bonito do Brasil. Saudade de tanta gente. Saudade de mim mesmo e do repórter-cronista que eu sonhei que poderia me tornar naquelas páginas impregnadas de tanta nobreza.
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