Desafios à proteção da privacidade no turbilhão das tecnologias emergentes são agenda do Grupo de Pesquisa em Direito e Novas Tecnologias, coordenado pela professora Caitlin Mulholland
Até que ponto os pais podem vigiar, digitalmente, a vida real ou virtual de seus filhos menores, sem ferir seu direito à privacidade? O que pode ou não ser feito com dados pessoais, de saúde, biológicos, sem que seu prestador tenha qualquer conhecimento? A inteligência artificial pode ser antiética? Uma pessoa tem o direito de pedir para ser esquecida pela grande rede? Tantas perguntas demonstram a total impossibilidade de a sociedade dar conta, sem as devidas regulamentações e apoio jurídico, de tantas variáveis e nuances de direitos e deveres que surgem com as tecnologias e aplicativos, da mesma forma que o cidadão comum é incapaz sequer de imaginar de quantas formas essas tecnologias poderiam lesá-lo.
É para isso que o Direito está, literalmente, se programando. Para buscar não apenas respostas, mas principalmente formas de garantir a proteção à privacidade dos usuários de tecnologia, seja defendendo-os, seja apoiando o desenvolvimento de políticas públicas. E é para isso que trabalha o Grupo de Pesquisa em Direito e Novas Tecnologias, coordenado pela professora Caitlin Mulholland, envolvendo pesquisadores da PUC-Rio, da Uerj e do Instituto de Tecnologia e Sociedade.A professora Caitlin Mulholland orienta trabalhos de iniciação científica, dissertações de mestrado e teses de doutorado, além de integrar o Legalite, núcleo interdepartamental entre Direito e Informática, lançado no ano passado por iniciativa dos professores Gustavo Robichez de Carvalho e Rafael Nasser, do laboratório de Engenharia de Software, responsável por uma série de projetos justamente localizados na fronteira entre as duas disciplinas.
– Praticamente todos os meus orientandos desenvolvem algum tipo de pesquisa envolvendo o debate em torno de privacidade. Dois pesquisadores de iniciação trabalham alinhados com alunos de doutorado na área de Privacidade e Novas Tecnologias, esclarece a professora.
Dentro desse grande tema, uma das abordagens da pesquisa de iniciação científica se refere ao direito à privacidade de menores frente à vigilância eletrônica dos pais:
– É o que eu chamo de ‘i-stalking’, e diz respeito aos mecanismos de vigilância parental de menores de idade, seja por meio de câmeras instaladas na casa, das redes sociais... É buscar entender e definir até onde o direito dos pais de monitorar as atitudes dos filhos nos mundos real ou digital, como forma de proteção, pode afetar sua privacidade. A criança e o adolescente têm esse direito, afinal? E se tiverem, em qual nível? Até onde poderia ser exercido o poder parental, de forma a não o violar? Há também a discussão sobre a obrigatoriedade de os filhos maiores de 13 anos adicionarem os pais em uma rede social. Portanto, é tentar entender a relação entre a segurança e a privacidade, no melhor benefício da criança, e suas possíveis consequências – observa Caitlin.
A Internet das Coisas, por sua vez, em que quase qualquer dispositivo pode estar conectado, em rede, a outro dispositivo, surge como uma fonte inesgotável de questões jurídicas, em especial relacionadas à coleta e ao uso de dados pessoais, na maior parte das vezes inadvertidamente.
“A internet das coisas se refere à coleta de dados por inúmeros dispositivos. Essa coleta é voluntária, pois a usuário está entrando com suas informações com objetivos pessoais, mas sem prever para onde estão sendo enviadas e com qual finalidade. O tempo todo os dados das pessoas estão sendo violados. São algoritmos, qualquer pesquisa gera propaganda, por exemplo. Então, o Direito precisa avançar para orientá-las e protege-las em todas essas questões”, alerta a pesquisadora.
Caitlin menciona recente caso nos Estados Unidos, envolvendo marca mundialmente conhecida de eletroeletrônicos e contestando a gravação e posterior uso de conversas particulares, realizadas em ambiente próximo a uma smart TV dotada recursos de pesquisa de voz, que vêm ativos de fábrica. O microfone aberto, por default, é capaz de gravar o som ambiente; o áudio tratado pode ser compartilhado para fins comerciais.
– Alguns smartphones, por exemplo, vêm de fábrica com um aplicativo de programa de saúde, mas nós não temos nenhuma informação sobre o que será feito com nossos dados. Vamos supor que uma mulher esteja inserindo dados sobre seu ciclo ovulatório para seu próprio controle. Hipoteticamente, esses dados poderão ser fornecidos para uma clínica de fertilização ou para uma loja de artigos infantis, já que por meio dos dados coletados é possível saber se a pessoa está grávida ou com dificuldades para engravidar, comenta.
A Internet da Coisas é um tema em que a professora Caitlin vem trabalhado tanto com a iniciação científica quanto com o doutorado. “Tenho um aluno de doutorado, o Eduardo Magrani, que hoje está na Alemanha como senior fellow do Instituto Humboldt, em Berlim, um dos maiores institutos de estudos sobre Internet e Sociedade do mundo. Eduardo está investigando como como é feita a regulação para a proteção de dados na Internet das Coisas. A pesquisa de iniciação está associada à pesquisa de doutorado”.
O direito ao esquecimento na Internet, tema novo que também suscita muitos questionamentos, é tratado por outro aluno de doutorado da professora Caitlin Mulholand. Luiz Fernando Moncau está em Stanford como visiting scholar e estuda sobre a remoção de conteúdo e o direito ao esquecimento.
– Tem a ver com a privacidade. Juridicamente, uma pessoa pode exigir que um site ou um buscador, como o Google, retire toda a informação sobre si porque não quer ter sua história rememorada? Em 2014, uma decisão do tribunal europeu condenou a Google, exigindo que a empresa desindexasse um determinado mecanismo de busca porque o autor da ação não queria ter seu passado lembrado, pois isso estava afetando sua vida. O tema também tem a ver com tecnologia porque uma coisa é uma notícia no jornal impresso, outra coisa é uma rede, em que a informação fica disponível eternamente, para quem quiser acessá-la. A Internet não esquece – observa a professora.
O grupo da professora Caitlin trabalha ainda em pesquisas relacionadas ao anteprojeto de lei de proteção de dados: “Não se tem, no Brasil, uma regulação sobre proteção de dados. O Marco Civil da Internet regula questões relacionadas estritamente à Internet, mas não trata da proteção de dados – como podem ser coletados, quais os tipos de termo de uso e política de privacidade que devem ser utilizados, como os dados devem ser tratados, se podem ou não ser compartilhados. Tudo isso está em debate no congresso, portanto estudamos esses projetos de lei até para propor, em audiências públicas de que venhamos participar, modificações ou complementações às leis.
A professora Caitlin Mulholland é co-orientadora de tese de doutorado da aluna Bianca Kremer, orientada pela professora Maria Celina Bodin de Moraes, que trata de tecnologia e gênero, e busca avaliar como o mundo tecnológico branco e masculino influencia na construção de algoritmos e softwares excludentes da mulher negra.
“Pouco tempo atrás, quando se pesquisava no Google inserindo as palavras ‘jovens brancos’, chegava-se a anúncios de marcas nacionais ou internacionais de requinte e glamour; por outro lado, ao se digitar ‘jovens negros’, as imagens que chegavam eram de criminosos, de violência, de jovens delinquentes. Isso é uma criação algorítmica, mas alguém realizou uma programação, que vai sendo modificada pela própria sociedade, à medida que efetua pesquisas, gerando os novos resultados expostos. As diferenças mencionadas foram abordadas, inclusive, em artigo publicado no Buzzfeed, no ano passado:
https://www.buzzfeed.com/alexandreorrico/google-negros-e-brancos?utm_term=.jdyzWz4kV#.ygvozo07P.”
A outra tese co-orientada trata de bancos de dados biológicos, mais precisamente da apreensão de dados biológicos e genéticos por indústrias farmacêuticas, centros de pesquisa médica e da proteção de minorias.https://www.buzzfeed.com/alexandreorrico/google-negros-e-brancos?utm_term=.jdyzWz4kV#.ygvozo07P.”
– Será que o dado biológico obtido de uma pesquisa feita com uma determinada comunidade vai reverter em benefício dessa comunidade? Será que uma pessoa que doou sangue sabe que o seu material biológico coletado no Rio de Janeiro está sendo utilizado numa pesquisa na Alemanha? Acreditamos que pessoas que tenham seus dados biológicos ou genéticos coletados e compartilhados devam ter a informação sobre o que vai ser feito com esses dados e, de alguma forma, ser beneficiadas (ou a sua comunidade), caso algum tipo de resultado gere uma consequência positiva, como uma descoberta. Fala-se em minorias porque a pesquisa médica, hoje em dia, muitas vezes se utiliza de comunidades carentes, que doam sangue em troca de lanches, por exemplo, mas, em contrapartida, não demonstra interesse em investigar doenças típicas de minorias como Leishmaniose, Lepra, Doença de Chagas. Essas populações doam seu material biológico ou genético, mas não são alvo da indústria farmacêutica. A aluna Carolina Franco, que está na Universidade de Paris - Nanterre, por meio de convênio Cofecub e realizando a dupla diplomação, se debruça sobre essas questões, conta a professora.
Segundo Caitlin, no Departamento de Direito são realizados, periodicamente, seminários, em conjunto com o Núcleo de Estudos Constitucionais, para tratar das novas tecnologias e dos direitos do cidadão. Também vou publicar uma coletânea de artigos resultantes das pesquisas de iniciação científica e de doutorado, junto com artigos de professores e de outros alunos. “O assunto emergente, nesse momento, é a discussão sobre a neutralidade dos algoritmos. Existe neutralidade científica? Essa é a grande questão que se impõe. A Google alega que seu sistema de busca apresenta os resultados do que as pessoas mais clicam, mas a inteligência artificial muitas vezes faz sugestões extremamente antiéticas, que já resultaram em um número grande de processos. Pode-se considerar, então, que os resultados concedidos pela tecnologia sejam eticamente neutros ou enviesados para uma questão de gênero ou uma questão racial?”.
Mais um desafio para o Direito e a sociedade nesse admirável mundo novo.
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