RIO - A pandemia agravou a desigualdade no acesso à internet no Brasil, o que pode deixar cicatrizes sociais em crianças e jovens: com a exclusão digital e a disparidade no acesso à educação, o risco de os filhos não conseguirem ter renda superior à dos seus pais quando adultos aumenta. O alerta é do Instituto de Mobilidade e Desenvolvimento Social (IMDS), criado recentemente pelos economistas Arminio Fraga, ex-presidente do Banco Central, e Paulo Tafner.
Os dados cruzados pelo instituto mostram que só 29,6% dos filhos de pais que não tiveram qualquer instrução têm acesso à banda larga. Nos lares onde os pais têm curso superior, essa parcela sobe para 89,4%. E mais: 55% dos filhos de pais sem instrução não têm acesso à internet. A fatia cai para 4,9% quando os pais concluem a universidade.
Segundo Tafner, diretor-presidente do instituto, já é certo que o país vai piorar no indicador de mobilidade social entre gerações, que tem avançado desde a década de 1960 com a universalização da educação básica:
— Um dos principais caminhos para aumentar a mobilidade social é a educação. No caso do Brasil, na pandemia, ampliou-se esse fosso digital. Os meninos e meninas que estão em escolas particulares têm aula remota. E praticamente nenhuma escola pública teve aula presencial ou remota. A possibilidade de mobilidade social foi diminuída.
Claudia Costin, diretora do Centro de Excelência e Inovação em Políticas Educacionais da Fundação Getulio Vargas (FGV) e ex-secretária municipal de Educação do Rio, cita pesquisa que mostra que 68% das chances do sucesso de uma criança na escola dependem da escolaridade dos pais.
— Um ano letivo fora da escola vai afetar de forma muito mais importante as famílias que estão em situação de maior vulnerabilidade, em casas onde os jovens se acumulam na cozinha com o resto da família para tentar aprender, compartilhando um celular.
Duas realidades
Samara Victória e Ana Bueno de Freitas, ambas com 18 anos, moram na Zona Sul do Rio e compartilham do mesmo objetivo: conquistar uma vaga em uma universidade pública. Para isso, as duas estudaram on-line no ano passado para se preparar para o Enem. Mas um abismo social e digital separa as duas jovens, que moram na Rocinha e em Copacabana, respectivamente.
Samara sonha em ser médica e tenta pela segunda vez uma vaga no curso de Medicina. Ela acompanhou aulas remotas no pré-vestibular comunitário da Rocinha . Apesar de ter acesso a Wi-Fi e celular com 4G, o serviço é pré-pago e seu pacote de dados, limitado.
— Às vezes o Wi-Fi falha, e eu preciso rotear a internet do celular. Mas já tive que sair mais cedo da aula porque a internet do celular ia acabar.
Em 2020, Samara perdeu o pai. A mãe perdeu o emprego, e a filha a tem ajudado a montar uma barraca em uma feira perto de casa.
Já Ana pôde se dedicar integralmente ao estudo durante a pandemia. Concluiu o ensino médio no ano passado e pretende cursar Direito ou História. Com acesso à internet em casa e no celular, acompanhou as aulas on-line do colégio, fez aulas remotas particulares e ainda teve acesso a um curso preparatório a distância:
— Eu me vejo numa condição de muito privilégio. Tive um escritório em casa, computador, acesso a professores, psicóloga e não tive de trabalhar nem em casa.
Pobreza digital
O sociólogo Carlos Ribeiro, do Iesp/Uerj, afirma que ainda é difícil prever se a mobilidade social vai diminuir, mas certamente a desigualdade nas chances de ter um futuro melhor que o dos pais vai aumentar com a perda do ano letivo entre os mais pobres:
— Entre a origem e o destino socioeconômico, a educação tem efeito muito forte. Ter esse desastre na educação é muito ruim.
O risco da exclusão digital é global, e os efeitos podem ser mais intensos num país que é o nono mais desigual do mundo como o Brasil. O Relatório de Riscos Globais de 2021, do Fórum Econômico Mundial, divulgado na semana passada, alerta que “um crescimento da lacuna digital pode maximizar as fraturas sociais e minar as perspectivas de uma recuperação inclusiva”.
Para Marcelo Medeiros, sociólogo e professor visitante na Universidade de Princeton, o acesso digital é, hoje, um direito fundamental e “não foi incluído na Constituição na década de 1980 porque o mundo era diferente”. Agora, deveria ser incluído:
— Como focamos na erradicação da fome, da pobreza pela renda, temos que focar na erradicação da pobreza digital.
Nenhum comentário:
Postar um comentário