sábado, 22 de setembro de 2012

Crise existencial assola a Europa num mundo obcecado por competição


Entrevista Daniel Cohen


Para economista francês, Daniel Cohen, além do crescimento, também é preciso que se persiga a felicidade


Novas soluções . Para o economista Daniel Cohen, apenas “dispositivos técnicos” não farão a causa europeia avançar Foto: Divulgação
Novas soluções . Para o economista Daniel Cohen, apenas “dispositivos técnicos” não farão a causa europeia avançarDIVULGAÇÃO
PARIS - Estimulada pelo capitalismo financeiro, a crescente competição econômica encurralou o espírito de cooperação na sociedade contemporânea. O “homo economicus” expulsou da sala o homem moral e construiu labirintos que dificultam a busca da felicidade. Crescimento econômico não é necessariamente o caminho para o bem-estar, diz o economista Daniel Cohen, vice-presidente da Escola de Economia de Paris e diretor do Centro para a Pesquisa Econômica e suas Aplicações (Cepremap, na sigla em francês). Em seu mais recente ensaio lançado na França, “Homo economicus — profeta (errante) dos novos tempos” (ed. Albin Michel), ele desenvolve de forma intimista reflexões feitas em sua obra anterior, “A prosperidade do vício, uma viagem (inquieta) pela economia” (ed. Zahar).
Por que, em suas palavras, a Europa vive hoje uma “crise existencial” e o euro seria uma “prisão dourada”?
A Europa está quase na mesma página em branco de seu início. Constituiu-se como união monetária e econômica desde os anos 1950. Tudo isso foi feito à sombra da Segunda Guerra Mundial, e depois, na Guerra Fria, na ideia de criar o que Victor Hugo havia chamado de Estados Unidos da Europa. Isto é o que deveria ter sido feito. Victor Hugo dizia sonhar com uma Europa na qual a diferença entre um francês e um alemão fosse a mesma entre um parisiense e um bretão. E descobrimos, na crise, que um alemão não considera um grego ou um espanhol como um irmão de infortúnio. Essas questões não foram resolvidas e, na hora da crise, vimos de forma muito dolorosa provas de nenhuma indulgência em relação aos países em dificuldade: “Eles estão em crise por causa de seus erros”. Nos anos 2000, todo mundo incensava os modelos irlandês e espanhol, de forte crescimento e finanças públicas equilibradas. Depois, tudo veio abaixo.
O euro está em risco?
Vimos nos anos 1970 — mas pensava-se que não seria algo tão importante — que não havia mecanismos de resolução para crises bancárias e de finanças públicas. Se a Itália entra em falência e cai amanhã, o euro cai junto. Inversamente, quando o euro está frágil, é ruim para a Itália. Foi algo mal feito na sua origem. Houve progressos limitados, mas importantes do ponto de vista técnico, como as recentes decisões do Banco Central Europeu e da corte constitucional alemã, que autorizou o Mecanismo Europeu de Estabilidade. Mas são dispositivos técnicos, para solucionar problemas técnicos. Não creio que será assim que se fará avançar a causa europeia. Deve-se, via Parlamento Europeu, criar mecanismos que estabeleçam um espaço público europeu, com verdadeiros debates de sociedade, que interessem a todos os países.
Pode-se dizer que o tema central de seu novo ensaio é que o ‘homo economicus’ impôs a competição ante à cooperação no mundo moderno?
Há uma história na origem deste meu livro. O diretor de um centro de transfusão sanguínea queria aumentar seus estoques e decidiu dar um prêmio em dinheiro a quem doasse sangue, para que o número de doadores aumentasse. Mas o resultado foi contrário a suas expectativas. O número de doadores caiu muito. A explicação: ou simplesmente solicitamos o comportamento moral das pessoas, ou pagamos, e, nesse último caso, o estímulo financeiro não se soma ao moral, mas o destrói. A competição é própria do capitalismo. Mas essa competição nos mercados se articulou numa competição no seio das empresas. E pensar a economia apenas no registro da competição, sem cooperação, é um erro grave. Hoje, as pessoas vão ao trabalho com medo, não mais com a satisfação de encontrar uma comunidade humana.
Qual é a relação do crescimento econômico com a busca da felicidade?
Os trabalhos dos economistas tornam indiscutível uma constatação: a corrida pelo crescimento, própria de nossa sociedade há dois séculos, não tornou as pessoas mais felizes. Quando vemos os indicadores de bem-estar, tudo demonstra que a felicidade — a partir, obviamente, de certo nível de salário e de subsistência — não progride. Após ultrapassado certo estágio, nos vemos num novo nível de estagnação. A estagnação do bem-estar.
Essa situação existe hoje em países emergente como o Brasil?
Os emergentes são responsáveis hoje por 70% do crescimento mundial. O Brasil é muitos países em um. É o país em que o nível de desigualdade ainda é um dos mais elevados do mundo. E as desigualdades são um fator indiscutível de sofrimento. É o caso também dos EUA. As desigualdades quebraram em pedaços o sonho americano. Foi uma catástrofe sociológica. O equilíbrio entre uma sociedade individualista e comunitarista foi rompido nos anos 1960. A sociedade americana se tornou, paradoxalmente, mais tolerante, por exemplo, em relação à questão racial após a eleição de Barack Obama. Mas perdeu elos sociais que existiam antes. Restou apenas o individualismo. É uma situação de grande solidão nos EUA, e vemos isso nos indicadores: é o país em que os índices de bem-estar caíram mais rapidamente.
Como o senhor avalia o papel da educação e da saúde em relação à lógica da sociedade de mercado?
É o paradoxo que resume tudo. Nos países avançados, e será o caso em breve nos emergentes, entramos numa sociedade pós-industrial, na qual os grandes vetores do crescimento são educação, saúde e pesquisa científica, e também o mundo da internet. São mundos que não entram muito na lógica de mercado. Não se pode pagar os médicos por sua eficácia, ou eles vão deixar de lado os doentes incuráveis. O mesmo para a educação. Há o caso da internet, onde ainda é difícil ganhar dinheiro. O Facebook tem um bilhão de usuários e registra US$ 3 bilhões de volume de negócios por ano. Não é muito. Estamos numa situação paradoxal em que intensificamos a competição num momento em que a sociedade deveria tender numa outra direção
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