sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

Entrevista: Frederic Martel - "Mainstream"



Todos temos duas culturas: a nossa e a americana

Entrevista concedida pelo sociólogo Frédéric Martel, ao jornalista Silio Boccanera, para o programa Milênio, da Globo News. O Milênio é um programa de entrevistas, que vai ao ar pelo canal de televisão por assinatura Globo News às 23h30 de segunda-feira, com repetições às 3h30, 11h30 e 17h30.
Uma guerra mundial pelo conteúdo dos meios de comunicação se trava pela conquista do público dentro e fora dos países criadores. Batalhas se desenrolam pelo domínio da notícia, do formato de programas de TV e pela exibição de filmes, vídeos, música, livros. Nesta disputa, um gigante domina: os Estados Unidos, com sua capacidade de produzir cultura de massas que agrada ao grande público em todos os continentes. Só com cinema Hollywood recebe pelo mundo US$ 40 bilhões ao ano. Essa penetração cultural americana, que muitos críticos preferem chamar de imperialismo, leva os filmes, a música e a televisão dos Estados Unidos para o mundo. Sua arma é o inverso da alta cultura, da contracultura, da subcultura, de nichos especializados. Visa o público em geral, cultura de massa, de milhões. Tornou-se a cultura internacional dominante, principal, a chamada mainstream conforme o título do livro escrito pelo convidado do Milênio, o sociólogo francês Frédéric Martel. Ele é também professor universitário em Paris e apresentador do principal programa de informação da rádio Francesobre as indústrias criativas e os meios de comunicação. Para escrever Mainstream, ele percorreu 30 países durante cinco anos, entrevistou mais de 1.200 pessoas em todas as capitais do entertainment, analisou a ação dos protagonistas, a lógica dos grupos e acompanhou a circulação internacional de conteúdo.

Silio Boccanera — Seu livro, “Mainstream: a Guerra Global das Mídias e das Culturas”, fala da dominância americana na cultura de massa no mundo. Os EUA são o gigante mundial na produção de cultura de massa que agrada as pessoas, o público, mundo afora, de música a filmes, programas de TV, tudo isso. Por que os EUA? Por que não a Europa?
Frédéric Martel —
 É uma boa pergunta, e como francês, eu ficaria feliz de dizer que a Europa também, e a França. Mas não é o caso. Ao menos, não mais. Por quê? Há muitas explicações. Mas, para dar uma resposta rápida a uma pergunta longa, eu diria, em primeiro lugar, pelo poder da indústria do entretenimento nos EUA, toda a diversidade e como ela engloba não só os EUA, como país, e o continente americano, como o mundo todo, em miniatura. Em terceiro lugar, a experimentação, a pesquisa e o desenvolvimento, a crença nas universidades, em setores sem fins lucrativos, nas comunidades. Todas essas coisas que basicamente criam uma energia, vários tipos de histórias, e daí por diante. Então o mercado usa isso para criar uma cultura dominante.
Silio Boccanera — Mas eles atingem o mundo todo, não só o mercado americano. O que você está dizendo é que o mercado americano...
Frédéric Martel —
 Já é o mundo. Exato, é uma amostra do mundo. São 44 milhões de latinos, 38 milhões de negros, 14 milhões de asiáticos. Então, a segunda maior cidade da Grécia, da Mongólia, de muitos países fica nos EUA. A população iraniana em Los Angeles é maior do que em qualquer lugar. A comunidade judaica de lá é a segunda do mundo. E daí por diante. Então, há grandes comunidades, de vários países, e, se um filme, um livro, uma música, faz sucesso nos EUA, ela é capaz de falar ao mundo.
Silio Boccanera — E eles usam seus mecanismos, sua capacidade de distribuição...
Frédéric Martel —
 Exato. Eles têm a capacidade de ser originais, novos, desafiadores, diferentes... Eles são capazes de produzir cultura em diferentes escalas. Eles fazem o produto de massa, o entretenimento... De Lady Gaga a “Matrix”, de “Batman” a “Avatar” ou o mais recente “Homem-Aranha” etc. Esse é um aspecto. Mas eles também são muito bons na produção da contracultura, da subcultura, da cultura de elite. Na dança, por exemplo: de Trisha Brown a Martha Graham, de Bill T. Jones a Merce Cunningham. Eles são muito fortes. E você tem também a elite, a cultura dominante, a subcultura, mas também a cultura digital, como você disse. Da Apple ao Twitter, do Facebook àWikipedia. E eles criticam a si próprios e sua própria cultura. O imperialismo é exatamente isso. Não só a cultura dominante, mas também a subcultura, a cultura de elite, a cultura digital, a cultural das comunidades e essa maneira de criticar a própria cultura. Isso é o verdadeiro imperialismo.
Silio Boccanera — É um imperialismo diferente daquele político e militar. É uma espécie de imperialismo cultural que é bem recebido no mundo.
Frédéric Martel —
 É o que basicamente chamamos de soft powerSoft power significa influenciar as pessoas com coisas legais. Você é amigável, não é contundente. Você tem as forças armadas, tem a diplomacia tradicional e grandes empresas econômicas, que formar o hard power, e tem o soft power, que influencia as pessoas através de filmes, de livros, da internet e de valores. A liberdade de expressão, a capacidade de se tornar alguém, ainda que você venha de uma vizinhança ruim, como um gueto ou uma favela. Você pode, mesmo que seja negro, de se tornar presidente dos EUA. Isso também faz parte da história.
Silio Boccanera — Parte desse soft power que você descreveu. Por que os filmes americanos viajam o mundo todo? Isso se deve ao marketing e a outros elementos?
Frédéric Martel —
 É claro. O marketing, a força das indústrias de cultura e Hollywood, um setor privado que é um grande conglomerado, mas também graças ao apoio do Congresso e do governo dos EUA. Não esqueça que o governo americano, a MPAA (Motion Picture Association of America), que é basicamente, o lobby de Hollywood em Washington, também ajudam essa indústria. Mas, além disso, fazer um filme é algo muito caro. Fazer um blockbuster como “Avatar”, “Batman” ou “Homem-Aranha” custa mais de 300, 400, 500 milhões de dólares. Para um só filme. Pouca gente consegue dispor dessa quantia. Além disso, é algo profissional. Eles são capazes de lançar um novo filme em mais de 130 países, no mesmo dia, em 50 ou 60 idiomas diferentes. Poucos países são capazes de fazer isso.
Silio Boccanera — E como os países protegem a cultura nacional? Por que as culturas nacionais e regionais também são importantes. Há maneiras diferentes de fazer isso, como os chineses, por exemplo. Acho que você foi bem crítico no seu livro, sobre a maneira como os chineses tentam proteger sua cultura.
Frédéric Martel —
 Eu não sou a favor nem contra de ninguém. Não sou a favor ou contra os EUA, ou a China. Eu apenas tento ver como a coisa funciona. Na China, eles criaram a mais dura forma de censura a cotas. Apenas cerca de 20 filmes americanos podem entrar no mercado chinês por ano. E, quando um filme faz muito sucesso, como foi o caso de “Avatar” na China, eles o cortam e censuram, para não fazer tanto sucesso. Ainda assim, mesmo com essa maneira estranha de exercer a censura, os EUA conseguem mais de 50% das bilheterias na China. Já na Índia, por exemplo, praticamente não há censura, não há cotas, e os americanos podem promover o filme quiserem na Índia. Com sua fortíssima produção de Bollywood, em Mumbai, os indianos conseguem 80% das bilheterias, com filmes indianos, e a parcela americana é de menos de 10%. Então, cotas ou censura não funcionam, por nada.
Silio Boccanera — E o modelo francês? A França tem uma maneira especial de se preservar.
Frédéric Martel —
 É uma maneira diferente. Não temos cotas nem censura. Os americanos são bem-vindos a lançar o filme que quiserem. Mas nós oneramos os ingressos com uma taxa. Quando compra ingresso para qualquer filme, mesmo para um filme americano, você paga uma taxa de 11%, que vai para a indústria cinematográfica francesa, para ela promover e produzir filmes franceses. E, a propósito, em países como o Brasil, eu fico triste de dizer que a bilheteria dos filmes nacionais é muito pequena, provavelmente de 2% a 5%, não mais. Isso em um país onde se abre uma nova sala de cinema por dia. A pergunta para os brasileiros, que está relacionada à cultura dominante, é: “Vocês querem, abrindo mais salas de cinema, que as pessoas assistam apenas a filmes americanos ou vocês querem que elas assistam a mais filmes brasileiros?” É possível. É uma escolha do governo, é uma questão de regulamentação.
Silio Boccanera — Sempre houve uma percepção da cultura como dividida em duas: a cultura da elite, muito sofisticada e intelectual, que as pessoas normalmente associam à Europa, e a cultura de massa, dominada pelos EUA. Essa distinção faz sentido para você?
Frédéric Martel —
 Basicamente, você parece um francês dizendo isso, porque essa é a maneira francesa e, eu diria, a maneira europeia de pensar a cultura. A cultura de elite, que é boa, e a cultura de baixa qualidade, que é, basicamente, entretenimento e cultura de massa, que, no final, nós não apreciamos. Essa era uma maneira de pensar o mundo da cultura. Isso não funciona.
Silio Boccanera — Uma maneira europeia de pensar.
Frédéric Martel —
 E é como pensamos na Espanha, na Itália, na Alemanha. De Adorno a Hannah Arendt, de Benjamin a Horkheimer, para mencionar os mais famosos. Mesmo Umberto Eco. Figuras famosas, francesas, europeias. O mundo de hoje não pensa assim. Não porque não há hierarquia. É claro que há alguma hierarquia. Mas a hierarquia é o que você, como pessoa, crê e pensa. E, na verdade, videogames, filmes, seriados de TV, mangás, qualquer tipo de cultura popular, também podem ser arte. E, na verdade, vemos “Avatar” ou “Batman” como arte hoje em dia. O jazz era arte, e o rap também pode ser cultura. Essa ideia de hierarquia não funciona da mesma maneira. E é por isso que, na Europa, nós não conseguimos acompanhar o que acontece no mundo. E, nos EUA, eles viram rapidamente que essa hierarquia acabou. E por quê? Por causa do movimento dos direitos civis dos negros. Durante esse movimento, o jazz, a música da Motown, o soul e o rhythm & blues eram produzidos principalmente pelos negros. E, no final, era impossível dizer que a música negra era inferior. A música negra é cultura, também é arte. E, em um país como o Brasil, vocês entendem isso melhor do que eu, do que nós, porque, aqui, vocês têm diferentes classes e etnias capazes de produzir cultura de qualidade. É o fim da hierarquia ou, pelo menos, da hierarquia como a elite vê.
Silio Boccanera — E, nessa perspectiva crítica que, como você disse, é mais predominante na Europa e separa as culturas de elite e de massa, você vê algum sinal de fascínio pela cultura de massa americana? Eles criticam, mas gostam.
Frédéric Martel —
 É... Quer dizer, nós, como europeus, temos o mesmo tipo de relação que você, como brasileiro, tem com os EUA. Nós os amamos e odiamos. É uma complicada relação de amor e ódio. Nós esperamos que eles sejam como são, nós queremos criticá-los, mas, ao mesmo tempo, nós protestamos contra eles com tênis Nike nos pés. Nós trabalhamos para ser um pouco como eles, muito embora nós queiramos manter nossa identidade e cultura. E, a propósito, a boa notícia é que o debate no mundo hoje e no futuro não ser entre nós — brasileiros, franceses, europeus — e os americanos. Será entre todos nós. O que eu quero dizer é que hoje não há apenas dois povos: nós e os EUA. O mundo é muito mais complicado, com países emergentes, que serão fundamentais nesse novo jogo.
Silio Boccanera — A Columbia pertence a um grupo japonês, a Sony. A editora Random House pertence a um grupo alemão, Bertelsmann, e deve se fundir com a britânica Pearson. A Time Warner Books pertence à francesa Lagardère. Mas o que todas elas produzem não é típico desses países. O que todas fazem é um produto americano, não é?
Frédéric Martel —
 Na verdade, é por isso que se precisa ver novas maneiras de pensar. Foi por isso que escrevi este livro, Mainstream. As coisas estão muito diferentes de como eram antes. Nos anos 1950, todos acreditavam que quem possuísse os meios de produção tinha um impacto no conteúdo produzido. Mas não é assim que funciona. A Sony é dona da Columbia que fez “Homem-Aranha”, que não é, por nada, um filme japonês. Nós somos os maiores produtores... Ainda bem. Parabéns aos franceses. Nós somos os maiores produtores de videogames, porque temos a Activision, a Blizzard e a Ubisoft, que são algumas das gigantes da indústria de videogames. Mas todas produzem videogames do tipo americano e britânico. E o mesmo acontece com a Bertelsmann, que controla a Random House, que publicou O Código Da Vinci, que não tem nada de alemão. Você pode ser dono da empresa, o que é bom, pois lhe dá dinheiro, poder, de certa forma, mas isso não lhe dá soft power. Porque o conteúdo continuará tendo uma orientação de estilo americano e britânico.
Silio Boccanera — E qual é o papel do inglês, como língua, como elemento importante na imposição da cultura dominante?
Frédéric Martel —
 A língua é importante. Eu acredito — e essa é a principal conclusão do meu livro — que, no mundo em que estamos entrando, que reúne globalização e digitalização, a língua é importante. E eu acredito que a batalha, a luta, mesmo a guerra de conteúdo, será uma batalha a respeito da cultura nacional. Você pode ouvir Lady Gaga, gostar de “Avatar” e ler O Código Da Vinci, mas, no final das contas, a maior parte da cultura que você consome e ama, geralmente é nacional, local, regional, e não global. A cultura global é apenas uma pequena parte do que você gosta. Então, no final das contas, os americanos são os únicos a poder prover essa cultura dominante global, mas essa cultura dominante global continua pequena. Por quê? Porque a língua é muito importante, porque a identidade é muito importante. Quando você compra um livro de não ficção, quer saber o que acontece aqui, no seu país, e não na Coreia do Sul, por exemplo. Na Coreia do Sul você quer ouvir K-pop, que é a música pop coreana, e ver um drama coreano, e não ouvir uma música brasileira. Portanto, nós estamos em um mundo cada vez mais global, mas, ao mesmo tempo, a cultura ainda é e será muito nacional.
Silio Boccanera — Quando um produto estrangeiro entra, a cultura nacional permanece, mas esse produto tende a ser mais anglo-saxão. A música, por exemplo, é americana ou britânica.
Frédéric Martel —
 Para resumir as coisas, eu diria que todos temos duas culturas: a nossa e a americana. De certo modo é... Eu não fico feliz de dizer isso.
Silio Boccanera — Mas é a realidade.
Frédéric Martel —
 Eu preferia dizer que temos 50 culturas, mas não é verdade. Mas não se pode resumir dizendo que temos só a cultura americana, pois nós temos nossa própria cultura. E a própria cultura, no Brasil, em todas as cidades em que estive... Eu estive em Porto Alegre, em Recife, no Rio, em São Paulo e vi como as pessoas consomem músicas, novelas, programas de TV, publicidade e informações essencialmente brasileiras. E, às vezes, até a cultura local e regional. Eu acredito que a globalização e a digitalização, no futuro, serão cada vez mais diversificadas do que uniformes.
Silio Boccanera — Então, ao analisar filmes, televisão, livros, a mídia, você acha que o mundo digital já está mudando completamente? Vamos perder a velha maneira de fazer as coisas? Ou elas vão coexistir?
Frédéric Martel —
 A boa notícia é que a digitalização irá ganhar novas peças fundamentais no mundo. Eu acredito — e não digo isso só porque estou no Brasil — que, graças à internet, os chineses ficarão mais fortes, os indianos ficarão melhores, os árabes serão capazes de se expressar todos juntos.
Silio Boccanera — Para finalizar, eu acho que devemos nos concentrar no seguinte aspecto: a cultura dominante irá enfrentar uma concorrência maior do que nunca após tantos anos de predomínio dos EUA? Você acha que outros países estão indo na mesma direção?
Frédéric Martel —
 Para resumir, eu diria que os EUA continuarão sendo peça importante da guerra de conteúdo, podemos dizer, nos próximos anos e décadas. Eu não acredito e não compro a ideia do declínio da cultura americana. Eu acho que eles são fortes e continuarão sendo fortes. Mas eles não são os únicos no jogo. Agora temos os países emergentes, que estão emergindo não só demográfica e economicamente, como pensávamos. E eu fui um dos primeiros a mostrar que eles estão emergindo com sua cultura, sua mídia e com a internet. Nesse mundo, a internet pode ser uma peça importante, e ela é uma ferramenta que permite que as pessoas... O Brasil, por exemplo, vai crescer com a internet, com certeza. E foi por isso que eu passei um tempo recentemente no Viva Favela, com o pessoal do centro de inclusão digital. No Recife, eu estive com o pessoal do Porto Digital. Eu também conversei com o pessoal do projeto C.E.S.A.R. etc. Toas essas pessoas estão tentando criar ferramentas inovadoras de alfabetização etc. em comunidades, em favelas, em lugares onde as pessoas não têm acesso a uma livraria ou biblioteca. Mas elas terão acesso à internet em lan houses, por exemplo, e mesmo no telefone. Hoje, todo mundo tem um telefone celular barato. Mesmo na África, todos têm celulares com funções básicas. Em cinco anos, todos terão um smartphone, pois os preços estão caindo muito. Assim, todos poderão acessar a internet pelo smartphone. Se você tem acesso à internet, pode baixar livros, acessar a rede, poder ver filmes e daí por diante. A questão não é se essa tecnologia é boa. A questão é: ela não será boa ou ruim sozinha. Ela será o que você, o povo, o governo deste país e nós formos capazes de fazer com ela, criando uma boa internet e uma maneira melhor de ter acesso ao conteúdo através da internet.
Silio Boccanera — Ótimo. Obrigado.
Revista Consultor Jurídico, 25 de janeiro de 2013

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