Foi por cinco anos que não se encontraram no mundo. James Madison morreu em 1836. Oliver Wendell Homes Jr nasceu em 1841. Cinco anos que fizeram imensa diferença — Madison, o quarto presidente americano, foi na medula um homem do século 18. Holmes, tendo vivido boa parte da vida no século 19, mas só ministro da Suprema Corte americana no 20, fez boa parte do seu impacto nos tempos atuais. Nunca tendo se conhecido, porém lidando com rigorosamente as mesmas poucas palavras, na mesma ordem, com as mesmas vírgulas, inventaram juntos uma maneira única e radical de compreender o direito à livre expressão. Numa semana como esta que o Brasil viveu, em que livre expressão ficou no cerne do debate, os dois americanos e um inglês chamado John Stuart Mill, que sem tê-los conhecido viveu ali entre ambos — 1806 a 1873 —, são fundamentais.
A invenção da democracia é fruto do Iluminismo e dos filósofos que o imaginaram. Mas nenhum direito é visto com tanta distinção nas duas pontas do Atlântico como o da Liberdade de Expressão. Se não havia justificativa para a censura que o Supremo tentou impor à revista Crusoé, que apenas publicou uma informação de interesse público referente ao presidente do STF, o caso do comediante Danilo Gentile é um quê mais complexo. Foi condenado por ofender uma deputada federal e esfregar nas partes os papéis de condenação. Nos EUA, o caso provavelmente sequer seria apresentado a um juiz. Na Europa talvez fosse diferente.
Naquele universo Washington, Jefferson, Adams e Hamilton, James Madison é um tanto menos lembrado. No jovem e já independente Estados Unidos, uma extensa batalha se deu no Congresso entre os anos de 1787 e 88. A Constituição já estava escrita, uma folha frente e verso, na qual regras para a relação entre governo e sociedade, entre União e estados, se descreviam. Mas um grupo importante de deputados se recusava a ratifica-la: exigiam que fosse aprovada simultaneamente uma lista de direitos do cidadão. Foi Madison quem se predispôs a estudar o tema e assim rascunhou o que seriam os doze artigos que se tornaram as doze primeiras emendas à Constituição dos EUA. Foi ele quem decidiu, também, que a primeira da lista fosse esta:
“O Congresso não publicará lei a respeito ou estabelecendo religião, ou proibindo o livre exercício de uma; ou a respeito da liberdade de expressão, ou da imprensa; ou direito do povo de se reunir em paz, ou de peticionar o Governo a refletir sobre questões.”
Conhecida como Primeira Emenda, resumia na segunda frase dois longos debates que se deram nos séculos anteriores, na Inglaterra. Não havia TV, rádio, nada além de voz e texto impresso — e era em voz e texto impresso que Madison pensava quando escreveu.
‘Liberdade de imprensa’, no século 18, era compreendida como uma proibição de censura prévia. Ninguém poderia pré-aprovar um texto antes de ser impresso ou distribuído. Isto não quer dizer que, posteriormente, seu autor não poderia ser punido pelo que pôs em circulação.
‘Liberdade de expressão’, porém, a liberdade de dizer algo, havia nascido de forma mais restrita. Era a liberdade que um parlamentar tinha de poder, dentro do parlamento, dizer algo sem ser punido. Após o século 16, começou a se compreender que esta liberdade de debate sem ameaças do rei era fundamental para garantir um bom governo. O conceito nasceu como um direito político. Mas os debates do parlamento não eram publicados — apenas o resultado do consenso, na forma de leis. Argumentos radicais podiam ser levantados, mas não chegavam à sociedade sem consenso.
Em pleno Iluminismo, profundamente influenciados pelo filósofo John Locke, aqueles americanos que inventavam uma democracia acreditavam na ideia de que todos temos ‘direitos naturais’. No momento em que se passou a compreender que toda a sociedade participaria das decisões políticas, a liberdade de expressão tinha de se tornar um direito de todo o cidadão. Afinal, era o direito de poder manifestar ideias políticas, sem o qual não seria possível participar de um debate para eleição de parlamentares.
Sem muito percebê-lo, os homens que aceitaram, revisaram e aprovaram o texto original de Madison permitiram, então, uma discreta contradição na Primeira Emenda. Imaginavam para a expressão de ideias pela voz uma grande latitude de liberdade. Mas, para a liberdade tornar impressa uma ideia, só a garantia de que não haveria censura prévia.
Fazia sentido para o século 18. A única forma de uma ideia ir longe era sua impressão. Não havia grandes metrópoles com mais de um milhão de habitantes. O dano possível de ser causado por ideias ditas era mínimo — quantos poderiam ouvi-las?
John Stuart Mill escreveu o grande argumento pela defesa de uma liberdade de expressão radical – estendendo ao texto impresso, portanto às ideias com potencial de alcançar muitos, a mesma latitude já compreendia pelo que se falava em conversas ou discursos. Mill já vivia, em meados do século 19, num mundo com metrópoles industriais cujas populações se contavam aos milhões.
Seu argumento era o daquilo que posteriormente passamos a chamar de mercado de ideias. É preciso expor toda ideia ao debate. Tendo vivido após as revoluções americana e francesa, ele compreendia que ideias um dia radicais — como a de uma democracia — poucos anos depois poderiam se tornar conceitos quase unânimes. Então mesmo que algo dito ou impresso choque inicialmente a sociedade, é importante que nenhuma ameaça de censura ou pena, anterior ou posterior, seja imposta. É para que, na sociedade, ninguém se autocensure. Num ambiente onde todas as ideias vêm à luz, as melhores sobreviverão.
O limite, para Mill, estava no princípio do dano. Se causar algum dano — seja material, seja físico — aí, sim, algo dito pode levar a punição. Mas apenas neste caso.
Ofender uma parlamentar e esfregar uma decisão judicial nas partes, pelo argumento de Mill, é absolutamente legítimo. Em ambos os casos, usando o recurso de causar choque pela ofensa e pelo gesto, o comediante direciona a atenção popular para aquilo com que não concorda. Ele inicia um debate e, por isso, não poderia ser punido.
Influenciado pela leitura de Mill, e ministro da Suprema Corte americana, Oliver Wendell Homes Jr um dia discordou de seus pares. O ano, 1919. Imediatamente após o fim da Primeira Guerra, o governo americano processou e prendeu cinco homens acusados de distribuir panfletos que questionavam a participação do país no conflito e defendiam a ainda recente Revolução Soviética. Foram processados por uma lei que proibia discursos sediciosos ou qualquer percebida como traição.
Não era um debate trivial para Holmes. Ele havia servido como soldado na Guerra Civil, décadas antes. Sabia o alto custo que uma tentativa de sedição poderia impor. Mas também compreendeu ali que aqueles homens não ofereciam qualquer ameaça real ao governo e que puni-los por ter ideias diferentes, mesmo que radicais, ameaçava o direito de todos os cidadãos com base na Primeira Emenda.
Ou seja: caso o governo pudesse provar que o discurso dos réus teria potencial de causar dano — sedição —, a punição caberia. Sem, em suas palavras, ‘perigo claro e imediato’, nada justifica punir o que se diz ou publica. Na ausência de dano, punição era intolerável, uma ofensa aos direitos do cidadão. Inicialmente minoritária, esta visão teve pesada influência ao longo do século e se tornou virtualmente unânime.
A Europa nunca chegou a uma visão tão radical da liberdade de expressão e o principal motivo está naquilo que viveu, mas pelo qual os EUA não passaram: o fascismo.
Nos EUA, só após os anos 1950 a leitura que radicaliza a Primeira Emenda se consolidou. Na França, a liberdade de expressão se sustenta pela Lei da Liberdade de Imprensa, de 1881, que se aplica a toda comunicação com o intuito de ser pública. Dirigida a toda sociedade. Ela restringe em muito qualquer tipo de censura, prévia ou posterior. O discurso é plenamente livre em ambientes como as Cortes e o Parlamento. Mas, na sociedade geral, estabelece de saída o conceito de difamação. Aquilo que não aparece na Primeira Emenda, na lei francesa é explícito. Com base na ideia de que há discursos que têm potencial de dano apenas por existirem, na França manifestações públicas de racismo, antissemitismo ou justificativas para atos de terrorismo são ilegais.
Em todos os países europeus há imposições similares.
Do ponto de vista de quem defende estas proibições está o que veem como um buraco no raciocínio de John Stuart Mill. Se ideias movem os ânimos apenas com base na lógica, não há o que questionar em Mill. Mas, quando ele escreveu seu argumento, já havia telégrafo, porém não rádio. E o que rádio, cinema e depois TV potencializaram é a força do discurso oral. A capacidade que ideias têm de mover não só pela lógica, mas também pela emoção. É o que fizeram, num tempo de caos, Hitler e Mussolini. No tom de voz, nos gestos do corpo, na capacidade de mostrar-se convicto e forte, um demagogo tem a capacidade de mobilizar multidões na direção do ódio a um grupo.
Tendo vivido a experiência do fascismo, os europeus não diluíram, como fizeram os americanos, a ideia de que ideias, por si só, tenham potencial de dano.
Nenhum país é mais radical no combate ao discurso de ódio do que a Alemanha. Não à toa. Tem, em seu passado recente, tanto a experiência do nazismo quanto a do comunismo. Quem incita o público ao ódio de qualquer espécie pode ser preso por até cinco anos. Nos EUA, a Ku Klux Klan pode marchar numa rua com cartazes racistas. O que não pode é ameaçar qualquer pessoa. Na Alemanha, a KKK não teria o direito de existir.
Justamente por nazistas e comunistas, a Alemanha também tem em seu passado as polícias secretas Gestapo e Stasi. E, por isso, liberdade de expressão é um conceito fundamental de sua democracia. Internet e o aumento de imigrantes muçulmanos estão, juntas, tornando cada vez mais difícil conciliar os dois ideais. A proibição do ódio e a liberdade de expressão.
Até a TV, o número de pessoas com capacidade de fazer um discurso de impacto amplo era pequeno. Com as redes sociais, o tweet de um alemão anônimo pode atingir toda a nação. E a oposição à presença de imigrantes, que por vezes descamba para o racismo, é muito presente na sociedade. Como se equilibra o debate importante sobre a condução das políticas públicas em relação a imigrantes com a coibição de racismo? Onde está o corte? Quantas pessoas é razoável multar ou até prender pelo que publicam online, quando gírias ou mesmo ofensas racistas aparecem? Porque, às vezes, misturado a um argumento importante está também uma ofensa.
Hoje, as redes sociais são obrigadas, pela legislação alemã, a retirar qualquer conteúdo de ódio. O trabalho é cada vez maior e não parece ser viável no futuro.
Como rádio, cinema e TV mudaram a compreensão do que é liberdade de expressão e de imprensa, também a internet o fará. Se na direção de mais ou menos liberdade, é um debate aberto. Um debate que segue firme numa questão: qual o potencial de dano?
Para ler com calma: Uma história de como nasceu a Primeira Emenda, em PDF.
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