quarta-feira, 17 de outubro de 2012

O poder das grandes ideias em Huntington



Neste início de um novo ano, a pouco mais de dez dias da posse do novo presidente
norte-americano e com as expectativas de importantes mudanças políticas e
econômicas, poderíamos dizer que nos encontramos em um momento huntingtoniano.
Samuel Huntington, teórico político que faleceu no dia 24 de dezembro aos 81 anos,
refletiu sobre o poder do pensamento, e pertence à raça de homens que cultivaram
"grandes ideias", cujas obras mais famosas não só explicaram a transformação
histórica, como aparentemente a cristalizaram - alterando nossa maneira de olhar o
mundo, para melhor, mas também para pior.

Em 1968, quando Ordem Política nas Sociedades em Mudança foi publicado, a maioria
dos cientistas políticos afirmava que o segredo da democracia era a modernização. À
medida que as sociedades atrasadas se equiparassem às mais avançadas, teriam de
desenvolver também sistemas políticos mais abrangentes. Huntington usou um argumento
contrário: como muitas vezes a modernização trouxe o caos, o fator "sine qua non" de
uma sociedade bem-sucedida é a ordem, que pode refrear os demônios desencadeados
pela mudança social, e também criar as condições de uma reforma política gradual.
Segundo esta perspectiva, um sistema que impõe a ordem, até mesmo a ordem
autoritária, seria legítimo.

Na União Soviética, na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos, "o governo governa",
escreveu. Os três países "têm instituições políticas fortes, flexíveis e coerentes:
burocracias eficientes, partidos políticos bem organizados". Publicado no momento em
que os esforços para a construção de uma nação democrática no Vietnã do Sul se
revelaram desastrosos, o livro de Huntington modificou totalmente o debate. O Choque
das Civilizações, de 1996, também captou o momento histórico, embora com um
argumento diferente. O impulso unificador da ordem que era o fulcro da análise de
Huntington sobre a Guerra Fria - quando os regimes democráticos e autoritários
podiam coexistir, embora com desconforto - dava lugar a uma visão sombria de um
mundo dividido de forma irreconhecível. Huntington descreveu civilizações diferentes
com valores diferentes - mais especificamente, os do Ocidente e os do mundo
islâmico.

Nestes dois livros, Huntington aparentemente calibrou seus respostas enquanto a
história estava se fazendo. À medida que os acontecimentos foram mudando, também
mudaram as interpretações. Era de se esperar. A adaptação da teoria à realidade é a
essência do ofício do filósofo que reflete sobre o poder das ideias. Mas nem sempre
foi assim. Na idade clássica, quando as guerras duravam anos, e até mesmo décadas, e
a tecnologia evoluía lentamente, historiadores tinham uma visão mais aberta. Para
eles, nenhum evento histórico era mais importante do que outro. Todos
desenrolavam-se em ciclos recorrentes, dominados pelas profundas correntes da
natureza humana. Bernard Madoff é acusado de fraudar investidores em US$ 50 bilhões,
utilizando o mesmo esquema usado por Charles Ponzi em 1921. Os "instrumentos"
financeiros de Wall Street passaram por uma revolução nas últimas nove décadas, mas
as pessoas são movidas pelos mesmos apetites - inveja, cobiça, medo.

Foi na era moderna, com sua crença no progresso humano, que os pensadores começaram
a interpretar o mundo de um modo diferente - não como um registro da loucura humana,
e sim como a atuação de forças históricas em transformação. O filósofo italiano
Giambattista Vico afirmava no século 18 que todas as civilizações passam por três
estágios: a idade dos deuses, na qual as divindades governam a humanidade; a idade
dos heróis aristocráticos, em que os indivíduos superiores reinavam sobre os
inferiores; e a idade dos seres humanos comuns, em que homens e mulheres se governam
no espírito da igualdade.

Esta última fase acabou dando lugar à decadência e à desintegração caracterizadas
por comportamentos grotescos (reality shows). A este ponto, os deuses retornam
(Homem de Ferro, Hulk), e o ciclo dos três estágios recomeça. Ao mesmo tempo,
pensadores franceses como Voltaire, Condorcet e Turgot converteram a ideia cristã do
progresso espiritual em uma visão de aperfeiçoamento humano racional. Esta crença do
Iluminismo na perfectibilidade humana é, entre outras coisas, uma grande máquina de
fabricar ilusões. No início do século 19, um dos gigantes criadores de grandes
ideias, G.W.F. Hegel, tentou conciliar razão e religião por meio da lógica da
"dialética". Até mesmo eventos terríveis podem representar avanços para a sociedade
humana. A Revolução Francesa caiu na violência irracional, mas sua violência
"necessária" provocou reação racional contra esta verdadeira barbárie.

O mais influente teórico da história do século 19, Karl Marx, adotou a dialética de
Hegel, mas submeteu-a a uma revisão para adaptá-la à sua teoria do materialismo
histórico, cujas raízes estavam na luta de classes e na concorrência econômica. Para
Marx, "dialética" significava que os sistemas políticos plantam as sementes de sua
própria destruição. O triunfo do capitalismo burguês fomentava as injustiças
econômicas que, previa Marx, dariam origem ao proletariado, que, um dia, derrubaria
a burguesia. É possível observar os últimos 15 anos através das lentes marxistas. A
prosperidade e o sucesso espalharam as sementes da atual crise econômica, o que por
sua vez alimentou a ira crescente da "classe" dos financistas de Wall Street. Em
termos mais amplos, a visão de Marx foi desacreditada.

O mesmo, neste sentido, ocorreu com a teoria de Huntington sobre o "autoritarismo
modernizante". Em seu prefácio a uma recente edição de Ordem Política, Francis
Fukuyama, observou que o sistema soviético não foi absolutamente o governo eficiente
que Huntington afirmava que havia sido. A ideia de Huntington sobre o inevitável
choque das civilizações também soa diferente hoje - sua severa visão de mundo
assemelha-se de modo desconcertante ao pensamento sobre o qual se fundamenta a
cruzada do governo Bush contra o Islã político, embora o próprio Huntington se
mostrasse cético quanto ao que definiu como "missão" imperialista dos Estados Unidos
no Iraque. Huntington compreendeu corretamente muitas coisas. Mas em sua grandeza,
elas penderam para a excessiva simplificação. "Talvez", como escreveu Fukuyama,
"todas as grandes teorias estejam, em última análise, destinadas ao fracasso".

E por que teria de ser assim? Provavelmente porque em seu desejo de explicar tanto,
os grandes pensadores tendem a pular os elementos complicadores e as evidências do
contrário. Pintando em amplas e muitas vezes brilhantes pinceladas, frequentemente
eles não percebem as sombras e as rachaduras. A própria sedução da produção de
grandes ideias - sua promessa de que tudo se encaixa ou pelo menos pode-se fazer com
que pareça encaixar - é também um perigo. Com frequência, ela oferece algo
irresistível, a possibilidade de mudar, ou pelo menos controlar nossas vidas por
meio das ideias, mesmo que estas ideias não passem de invenções abstratas. No
entanto, enquanto houver uma história pública e privada, os seres humanos tentarão
interpretá-la à sua maneira. Para melhor, e para pior.

Lee Siegel, autor de Against the Machine, é professor da Rutgers University


http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,o-poder-das-grandes-ideias-em-huntington,305369,0.htm


Contribuição: Pedro Bentes

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