Neste início de um novo ano, a pouco mais de dez dias da posse do novo presidente norte-americano e com as expectativas de importantes mudanças políticas e econômicas, poderíamos dizer que nos encontramos em um momento huntingtoniano. Samuel Huntington, teórico político que faleceu no dia 24 de dezembro aos 81 anos, refletiu sobre o poder do pensamento, e pertence à raça de homens que cultivaram "grandes ideias", cujas obras mais famosas não só explicaram a transformação histórica, como aparentemente a cristalizaram - alterando nossa maneira de olhar o mundo, para melhor, mas também para pior. Em 1968, quando Ordem Política nas Sociedades em Mudança foi publicado, a maioria dos cientistas políticos afirmava que o segredo da democracia era a modernização. À medida que as sociedades atrasadas se equiparassem às mais avançadas, teriam de desenvolver também sistemas políticos mais abrangentes. Huntington usou um argumento contrário: como muitas vezes a modernização trouxe o caos, o fator "sine qua non" de uma sociedade bem-sucedida é a ordem, que pode refrear os demônios desencadeados pela mudança social, e também criar as condições de uma reforma política gradual. Segundo esta perspectiva, um sistema que impõe a ordem, até mesmo a ordem autoritária, seria legítimo. Na União Soviética, na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos, "o governo governa", escreveu. Os três países "têm instituições políticas fortes, flexíveis e coerentes: burocracias eficientes, partidos políticos bem organizados". Publicado no momento em que os esforços para a construção de uma nação democrática no Vietnã do Sul se revelaram desastrosos, o livro de Huntington modificou totalmente o debate. O Choque das Civilizações, de 1996, também captou o momento histórico, embora com um argumento diferente. O impulso unificador da ordem que era o fulcro da análise de Huntington sobre a Guerra Fria - quando os regimes democráticos e autoritários podiam coexistir, embora com desconforto - dava lugar a uma visão sombria de um mundo dividido de forma irreconhecível. Huntington descreveu civilizações diferentes com valores diferentes - mais especificamente, os do Ocidente e os do mundo islâmico. Nestes dois livros, Huntington aparentemente calibrou seus respostas enquanto a história estava se fazendo. À medida que os acontecimentos foram mudando, também mudaram as interpretações. Era de se esperar. A adaptação da teoria à realidade é a essência do ofício do filósofo que reflete sobre o poder das ideias. Mas nem sempre foi assim. Na idade clássica, quando as guerras duravam anos, e até mesmo décadas, e a tecnologia evoluía lentamente, historiadores tinham uma visão mais aberta. Para eles, nenhum evento histórico era mais importante do que outro. Todos desenrolavam-se em ciclos recorrentes, dominados pelas profundas correntes da natureza humana. Bernard Madoff é acusado de fraudar investidores em US$ 50 bilhões, utilizando o mesmo esquema usado por Charles Ponzi em 1921. Os "instrumentos" financeiros de Wall Street passaram por uma revolução nas últimas nove décadas, mas as pessoas são movidas pelos mesmos apetites - inveja, cobiça, medo. Foi na era moderna, com sua crença no progresso humano, que os pensadores começaram a interpretar o mundo de um modo diferente - não como um registro da loucura humana, e sim como a atuação de forças históricas em transformação. O filósofo italiano Giambattista Vico afirmava no século 18 que todas as civilizações passam por três estágios: a idade dos deuses, na qual as divindades governam a humanidade; a idade dos heróis aristocráticos, em que os indivíduos superiores reinavam sobre os inferiores; e a idade dos seres humanos comuns, em que homens e mulheres se governam no espírito da igualdade. Esta última fase acabou dando lugar à decadência e à desintegração caracterizadas por comportamentos grotescos (reality shows). A este ponto, os deuses retornam (Homem de Ferro, Hulk), e o ciclo dos três estágios recomeça. Ao mesmo tempo, pensadores franceses como Voltaire, Condorcet e Turgot converteram a ideia cristã do progresso espiritual em uma visão de aperfeiçoamento humano racional. Esta crença do Iluminismo na perfectibilidade humana é, entre outras coisas, uma grande máquina de fabricar ilusões. No início do século 19, um dos gigantes criadores de grandes ideias, G.W.F. Hegel, tentou conciliar razão e religião por meio da lógica da "dialética". Até mesmo eventos terríveis podem representar avanços para a sociedade humana. A Revolução Francesa caiu na violência irracional, mas sua violência "necessária" provocou reação racional contra esta verdadeira barbárie. O mais influente teórico da história do século 19, Karl Marx, adotou a dialética de Hegel, mas submeteu-a a uma revisão para adaptá-la à sua teoria do materialismo histórico, cujas raízes estavam na luta de classes e na concorrência econômica. Para Marx, "dialética" significava que os sistemas políticos plantam as sementes de sua própria destruição. O triunfo do capitalismo burguês fomentava as injustiças econômicas que, previa Marx, dariam origem ao proletariado, que, um dia, derrubaria a burguesia. É possível observar os últimos 15 anos através das lentes marxistas. A prosperidade e o sucesso espalharam as sementes da atual crise econômica, o que por sua vez alimentou a ira crescente da "classe" dos financistas de Wall Street. Em termos mais amplos, a visão de Marx foi desacreditada. O mesmo, neste sentido, ocorreu com a teoria de Huntington sobre o "autoritarismo modernizante". Em seu prefácio a uma recente edição de Ordem Política, Francis Fukuyama, observou que o sistema soviético não foi absolutamente o governo eficiente que Huntington afirmava que havia sido. A ideia de Huntington sobre o inevitável choque das civilizações também soa diferente hoje - sua severa visão de mundo assemelha-se de modo desconcertante ao pensamento sobre o qual se fundamenta a cruzada do governo Bush contra o Islã político, embora o próprio Huntington se mostrasse cético quanto ao que definiu como "missão" imperialista dos Estados Unidos no Iraque. Huntington compreendeu corretamente muitas coisas. Mas em sua grandeza, elas penderam para a excessiva simplificação. "Talvez", como escreveu Fukuyama, "todas as grandes teorias estejam, em última análise, destinadas ao fracasso". E por que teria de ser assim? Provavelmente porque em seu desejo de explicar tanto, os grandes pensadores tendem a pular os elementos complicadores e as evidências do contrário. Pintando em amplas e muitas vezes brilhantes pinceladas, frequentemente eles não percebem as sombras e as rachaduras. A própria sedução da produção de grandes ideias - sua promessa de que tudo se encaixa ou pelo menos pode-se fazer com que pareça encaixar - é também um perigo. Com frequência, ela oferece algo irresistível, a possibilidade de mudar, ou pelo menos controlar nossas vidas por meio das ideias, mesmo que estas ideias não passem de invenções abstratas. No entanto, enquanto houver uma história pública e privada, os seres humanos tentarão interpretá-la à sua maneira. Para melhor, e para pior. Lee Siegel, autor de Against the Machine, é professor da Rutgers University
http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,o-poder-das-grandes-ideias-em-huntington,305369,0.htm
Contribuição: Pedro Bentes
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