sábado, 31 de agosto de 2013

Livro de bolso completa 60 anos na França


Denunciado por intelectuais nos anos 1960 como uma banalização do livro, formato se tornou parte do cotidiano francês, mas hoje enfrenta retração geral do mercado e crescimento dos e-books

Por Fernando Eichenberg

“Não se pode viver sem um livro em seu bolso”. Por meio deste slogan o editor francês Henri Filipacchi lançou, em 1953, a coleção Livre de Poche, da editora Hachette. Inspiradora de iniciativas similares por parte de seus concorrentes, ela fez do livro de bolso um objeto cotidiano na paisagem cultural francesa e um inseparável companheiro dos leitores. Completando 60 anos na França, o formato mantém prestígio e popularidade, embora comece a sentir efeitos de mudanças no comportamento editorial e o avanço, mesmo que ainda incipiente e bastante lento, dos e-books, uma potencial ameaça futura.

O livro de bolso, que teve entre seus principais pioneiros a inglesa Penguin Books (1936) e a americana Simon&Schuster (1939), é “o fenômento mais marcante da história da edição contemporânea”, diz Bertrand Legendre, do departamento de Políticas Editoriais do Laboratório de Ciências da Informação e da Comunicação (LabSic), da Universidade de Paris 13.

— No começo era considerado um objeto de segunda categoria, algo vulgar, e hoje representa na França, em volume de negócios, 13,01% da atividade dos editores. Em títulos, produz 17,9% do total, e alcança 23,85% em número de exemplares vendidos — diz Legendre, citando o relatório divulgado em 2012 pelo Sindicato Nacional da Edição (SNE), baseado nos dados de 2011.

Como não poderia ser diferente na França, onde o debate é um verdadeiro esporte nacional, o livro de bolso não surgiu sem provocar alguma polêmica ideológica, filosófica e conceitual, com a intervenção, inclusive, de pensadores de renome, entre eles Jean-Paul Sartre. Logo em seu primórdio, alguns livreiros se opuseram à novidade, acusando o livro de bolso de desvalorizar a sua atividade. Mas a discussão inflamou os espíritos no início dos anos 1960, quando o sucesso do formato se revelou incontornável, com 8 milhões de exemplares vendidos apenas para a Livre de Poche em 1958, mesmo ano em que surgiria a concorrência da coleção J’ai Lu (Flammarion) e em que o escritor Jean Giono diria: “Hoje o livro de bolso é o mais poderoso instrumento de cultura da civilização moderna”. Em 1962, froam criadas as coleções de bolso Press Pocket (rebatizada de Pocket em 1993), Idées (Gallimard) e La Petite Bibliotèque (Payot).

— No começo se publicava sobretudo literatura contemporânea, livros policiais, coisas que não interessavam tanto aos intelectuais. Nos anos 60 a situação se complicou quando alguns editores passaram a publicar obras de ciências humanas em formato de bolso — conta Legendre.

Críticas de Michaux, Blanchot e Habermas

Em março passado, poucos dias antes da abertura do Salão do Livro de Paris, o Instituto Nacional do Audiovisual (INA) divulgou um vídeo de setembro de 1964 no qual um estudante de medicina, entrevistado para um programa de TV, defende a existência de uma “aristocracia de leitores” e condena o livro de bolso por proporcionar a leitura a “muitas pessoas que não tem necessidade de ler” e lhes dar uma “pretensão intelectual”. Contra o novo formato de leitura também se manifestaram nomes de prestígio das letras francesas como Henri Michaux, Maurice Blanchot e Julien Gracq, que se recusou a editar seus romances em livro de bolso por considerá-lo não condizente com a relação de “desejo e distância” que deve ser representada na qualidade do objeto material. Em 1962, numa ótica diversa e suplementar, o filósofo alemão Jürgen Habermas sinalizara uma contradição na comparação entre as bem cuidadas obras lançadas pelos clubes de livro e o títulos de bolso: “Com os livros de bolso, o que é durável aparece sob a forma do perecível, enquanto, ao contrário, os clubes do livro oferecem sucessos literários efêmeros sob a forma de livros feitos para durar: encadernados e com as bordas das páginas douradas”, escreveu ele em “Espaço público — Arqueologia da publicidade como dimensão constitutiva da sociedade burguesa”.

Em sua edição de novembro de 1964, a revista “Mercure de France” publicou um artigo de 16 páginas, “A cultura de bolso”, no qual o filósofo e historiador da arte Hubert Damisch denunciava o livro de bolso como uma “ilusão cultural” e uma iniciativa “mistificadora”, pois colocava em todas as mãos “substitutos simbólicos de privilégios educativos e culturais dos quais a grande massa não participa”. O formato “cumpre de fato com a transformação do livro de obra impressa em produto; produto tão bem concebido e apresentado que possa ser proposto ao consumidor nas mesmas condições e seguindo os mesmos métodos de qualquer produto detergente”, escreveu o filósofo, para quem a mercantilização do livro de bolso questionava sua legimitidade cultural.

O contra-ataque foi lançado logo no início de 1965 pela revista “Les Temps Modernes”, então dirigida por Sartre, em dois números coordenados pelo escritor Bernard Pingaud, com textos dele mesmo, Jean-François Revel e Philippe Sollers, entre outros. Em sua réplica, Pingaud defendeu a obra de bolso como um objeto modesto, imprório ao “entesouramento”, cuja própria “indignidade” lhe conferia valor. “O livro de bolso é feito para circular, servir, e preencherá plenamente seu papel no dia em que, considerado como um simples meio e não como um fim, a leitura, graças a ele, cessará de ser um privilégio para se tornar uma partilha, o caminho mais curto que liga um homem a outro”, escreveu. Para “Les Temps Modernes”, o livro de bolso se bastava como um vetor de cultura, e o determinante era o seu conteúdo. A controvérsia acabou por se apaziguar na segunda metade da década de 60:

— É preciso situar no contexto sociopolítico da época: 1964 se aproximava de 1968 e do período forte das ciências humanas na França. Maio de 68 e os anos 1970 varreram este debate da atualidade — diz Legendre.

Mais de 100 milhões de exemplares por ano

Nos anos que se seguiram, o livro de bolso não só adquiriu respeitabilidade cultural como afirmou sua importância no mundo editorial. Segundo o SNE, a fatia dos títulos de bolso no total de livros vendidos em 2011 chega a 52,68% para a categoria de literatura, 39,57% para dicionários e enciclopédias e 19,21% para documentos e ensaios de atualidade. No total foram vendidos 107,4 milhões de exemplares (contra 450,6 milhões para os livros de grande formato), uma redução de 2,9% em relação ao ano anterior (110,6 milhões), seguindo a tendência registrada desde 2008.

Os e-books não podem ser considerados responsáveis por esta queda. A edição digital ainda está em fase de desenvolvimento na França: 18% dos franceses declararam ter baixado um livro em 2011, contra 13% no ano anterior, segundo pesquisa da GFK, uma das principais empresas de pesquisa do mercado editorial no mundo. Em volume de negócios, houve um aumento de 7,2% em 2011, num total de 56,8 milhões de euros, mas a edição digital representa apenas 2% do mercado total de livros, de acordo com o SNE. Sinais dos tempos, para festejar os 60 anos de sua coleção, a editora Hachette lançou o website “o e-book do livro de bolso”, com uma oferta de mais de 500 títulos, mas sem uma grande diferença de preço entre a versão papel e a digital.

Para Legendre, as inquietações em relação ao livro de bolso correspondem menos ao lento progresso da edição digital, com oferta insuficiente e preço pouco competitivo, e mais a um enfraquecimento do livro em geral (diminuição de 0,3% na venda de exemplares no período 2010-2011).

— Há o reforço de um fenômeno que já era bem identificado: a redução do tempo de vida de um livro. Os lançamentos permanecem entre um mês e um mês e meio nas livrarias, algo que tende a se acentuar. Até agora o livro de bolso assumia o lugar na continuação, mas mesmo este formato começa a enfrentar dificuldades — diz.

Apesar das incertezas, ele acredita que as obras de bolso ainda têm uma vida longa pela frente:

— O livro de bolso ganhou toda sua legitimidade nas práticas de leitura. Se pensarmos nas coleções Folio, Actes Sud, Seuil e outras, tratam-se de livros de qualidade estética e que não são indignos das práticas culturais, muito pelo contrário.

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