Denunciado por intelectuais nos anos 1960 como uma banalização do livro, formato se tornou parte do cotidiano francês, mas hoje enfrenta retração geral do mercado e crescimento dos e-books
Por Fernando Eichenberg
“Não se pode viver sem um livro em seu bolso”. Por meio deste slogan o editor francês Henri Filipacchi lançou, em 1953, a coleção Livre de Poche, da editora Hachette. Inspiradora de iniciativas similares por parte de seus concorrentes, ela fez do livro de bolso um objeto cotidiano na paisagem cultural francesa e um inseparável companheiro dos leitores. Completando 60 anos na França, o formato mantém prestígio e popularidade, embora comece a sentir efeitos de mudanças no comportamento editorial e o avanço, mesmo que ainda incipiente e bastante lento, dos e-books, uma potencial ameaça futura.
O livro de bolso, que teve entre seus principais pioneiros a inglesa Penguin Books (1936) e a americana Simon&Schuster (1939), é “o fenômento mais marcante da história da edição contemporânea”, diz Bertrand Legendre, do departamento de Políticas Editoriais do Laboratório de Ciências da Informação e da Comunicação (LabSic), da Universidade de Paris 13.
— No começo era considerado um objeto de segunda categoria, algo vulgar, e hoje representa na França, em volume de negócios, 13,01% da atividade dos editores. Em títulos, produz 17,9% do total, e alcança 23,85% em número de exemplares vendidos — diz Legendre, citando o relatório divulgado em 2012 pelo Sindicato Nacional da Edição (SNE), baseado nos dados de 2011.
Como não poderia ser diferente na França, onde o debate é um verdadeiro esporte nacional, o livro de bolso não surgiu sem provocar alguma polêmica ideológica, filosófica e conceitual, com a intervenção, inclusive, de pensadores de renome, entre eles Jean-Paul Sartre. Logo em seu primórdio, alguns livreiros se opuseram à novidade, acusando o livro de bolso de desvalorizar a sua atividade. Mas a discussão inflamou os espíritos no início dos anos 1960, quando o sucesso do formato se revelou incontornável, com 8 milhões de exemplares vendidos apenas para a Livre de Poche em 1958, mesmo ano em que surgiria a concorrência da coleção J’ai Lu (Flammarion) e em que o escritor Jean Giono diria: “Hoje o livro de bolso é o mais poderoso instrumento de cultura da civilização moderna”. Em 1962, froam criadas as coleções de bolso Press Pocket (rebatizada de Pocket em 1993), Idées (Gallimard) e La Petite Bibliotèque (Payot).
— No começo se publicava sobretudo literatura contemporânea, livros policiais, coisas que não interessavam tanto aos intelectuais. Nos anos 60 a situação se complicou quando alguns editores passaram a publicar obras de ciências humanas em formato de bolso — conta Legendre.
Críticas de Michaux, Blanchot e Habermas
Em março passado, poucos dias antes da abertura do Salão do Livro de Paris, o Instituto Nacional do Audiovisual (INA) divulgou um vídeo de setembro de 1964 no qual um estudante de medicina, entrevistado para um programa de TV, defende a existência de uma “aristocracia de leitores” e condena o livro de bolso por proporcionar a leitura a “muitas pessoas que não tem necessidade de ler” e lhes dar uma “pretensão intelectual”. Contra o novo formato de leitura também se manifestaram nomes de prestígio das letras francesas como Henri Michaux, Maurice Blanchot e Julien Gracq, que se recusou a editar seus romances em livro de bolso por considerá-lo não condizente com a relação de “desejo e distância” que deve ser representada na qualidade do objeto material. Em 1962, numa ótica diversa e suplementar, o filósofo alemão Jürgen Habermas sinalizara uma contradição na comparação entre as bem cuidadas obras lançadas pelos clubes de livro e o títulos de bolso: “Com os livros de bolso, o que é durável aparece sob a forma do perecível, enquanto, ao contrário, os clubes do livro oferecem sucessos literários efêmeros sob a forma de livros feitos para durar: encadernados e com as bordas das páginas douradas”, escreveu ele em “Espaço público — Arqueologia da publicidade como dimensão constitutiva da sociedade burguesa”.
Em sua edição de novembro de 1964, a revista “Mercure de France” publicou um artigo de 16 páginas, “A cultura de bolso”, no qual o filósofo e historiador da arte Hubert Damisch denunciava o livro de bolso como uma “ilusão cultural” e uma iniciativa “mistificadora”, pois colocava em todas as mãos “substitutos simbólicos de privilégios educativos e culturais dos quais a grande massa não participa”. O formato “cumpre de fato com a transformação do livro de obra impressa em produto; produto tão bem concebido e apresentado que possa ser proposto ao consumidor nas mesmas condições e seguindo os mesmos métodos de qualquer produto detergente”, escreveu o filósofo, para quem a mercantilização do livro de bolso questionava sua legimitidade cultural.
O contra-ataque foi lançado logo no início de 1965 pela revista “Les Temps Modernes”, então dirigida por Sartre, em dois números coordenados pelo escritor Bernard Pingaud, com textos dele mesmo, Jean-François Revel e Philippe Sollers, entre outros. Em sua réplica, Pingaud defendeu a obra de bolso como um objeto modesto, imprório ao “entesouramento”, cuja própria “indignidade” lhe conferia valor. “O livro de bolso é feito para circular, servir, e preencherá plenamente seu papel no dia em que, considerado como um simples meio e não como um fim, a leitura, graças a ele, cessará de ser um privilégio para se tornar uma partilha, o caminho mais curto que liga um homem a outro”, escreveu. Para “Les Temps Modernes”, o livro de bolso se bastava como um vetor de cultura, e o determinante era o seu conteúdo. A controvérsia acabou por se apaziguar na segunda metade da década de 60:
— É preciso situar no contexto sociopolítico da época: 1964 se aproximava de 1968 e do período forte das ciências humanas na França. Maio de 68 e os anos 1970 varreram este debate da atualidade — diz Legendre.
Mais de 100 milhões de exemplares por ano
Nos anos que se seguiram, o livro de bolso não só adquiriu respeitabilidade cultural como afirmou sua importância no mundo editorial. Segundo o SNE, a fatia dos títulos de bolso no total de livros vendidos em 2011 chega a 52,68% para a categoria de literatura, 39,57% para dicionários e enciclopédias e 19,21% para documentos e ensaios de atualidade. No total foram vendidos 107,4 milhões de exemplares (contra 450,6 milhões para os livros de grande formato), uma redução de 2,9% em relação ao ano anterior (110,6 milhões), seguindo a tendência registrada desde 2008.
Os e-books não podem ser considerados responsáveis por esta queda. A edição digital ainda está em fase de desenvolvimento na França: 18% dos franceses declararam ter baixado um livro em 2011, contra 13% no ano anterior, segundo pesquisa da GFK, uma das principais empresas de pesquisa do mercado editorial no mundo. Em volume de negócios, houve um aumento de 7,2% em 2011, num total de 56,8 milhões de euros, mas a edição digital representa apenas 2% do mercado total de livros, de acordo com o SNE. Sinais dos tempos, para festejar os 60 anos de sua coleção, a editora Hachette lançou o website “o e-book do livro de bolso”, com uma oferta de mais de 500 títulos, mas sem uma grande diferença de preço entre a versão papel e a digital.
Para Legendre, as inquietações em relação ao livro de bolso correspondem menos ao lento progresso da edição digital, com oferta insuficiente e preço pouco competitivo, e mais a um enfraquecimento do livro em geral (diminuição de 0,3% na venda de exemplares no período 2010-2011).
— Há o reforço de um fenômeno que já era bem identificado: a redução do tempo de vida de um livro. Os lançamentos permanecem entre um mês e um mês e meio nas livrarias, algo que tende a se acentuar. Até agora o livro de bolso assumia o lugar na continuação, mas mesmo este formato começa a enfrentar dificuldades — diz.
Apesar das incertezas, ele acredita que as obras de bolso ainda têm uma vida longa pela frente:
— O livro de bolso ganhou toda sua legitimidade nas práticas de leitura. Se pensarmos nas coleções Folio, Actes Sud, Seuil e outras, tratam-se de livros de qualidade estética e que não são indignos das práticas culturais, muito pelo contrário.
O livro de bolso, que teve entre seus principais pioneiros a inglesa Penguin Books (1936) e a americana Simon&Schuster (1939), é “o fenômento mais marcante da história da edição contemporânea”, diz Bertrand Legendre, do departamento de Políticas Editoriais do Laboratório de Ciências da Informação e da Comunicação (LabSic), da Universidade de Paris 13.
— No começo era considerado um objeto de segunda categoria, algo vulgar, e hoje representa na França, em volume de negócios, 13,01% da atividade dos editores. Em títulos, produz 17,9% do total, e alcança 23,85% em número de exemplares vendidos — diz Legendre, citando o relatório divulgado em 2012 pelo Sindicato Nacional da Edição (SNE), baseado nos dados de 2011.
Como não poderia ser diferente na França, onde o debate é um verdadeiro esporte nacional, o livro de bolso não surgiu sem provocar alguma polêmica ideológica, filosófica e conceitual, com a intervenção, inclusive, de pensadores de renome, entre eles Jean-Paul Sartre. Logo em seu primórdio, alguns livreiros se opuseram à novidade, acusando o livro de bolso de desvalorizar a sua atividade. Mas a discussão inflamou os espíritos no início dos anos 1960, quando o sucesso do formato se revelou incontornável, com 8 milhões de exemplares vendidos apenas para a Livre de Poche em 1958, mesmo ano em que surgiria a concorrência da coleção J’ai Lu (Flammarion) e em que o escritor Jean Giono diria: “Hoje o livro de bolso é o mais poderoso instrumento de cultura da civilização moderna”. Em 1962, froam criadas as coleções de bolso Press Pocket (rebatizada de Pocket em 1993), Idées (Gallimard) e La Petite Bibliotèque (Payot).
— No começo se publicava sobretudo literatura contemporânea, livros policiais, coisas que não interessavam tanto aos intelectuais. Nos anos 60 a situação se complicou quando alguns editores passaram a publicar obras de ciências humanas em formato de bolso — conta Legendre.
Críticas de Michaux, Blanchot e Habermas
Em março passado, poucos dias antes da abertura do Salão do Livro de Paris, o Instituto Nacional do Audiovisual (INA) divulgou um vídeo de setembro de 1964 no qual um estudante de medicina, entrevistado para um programa de TV, defende a existência de uma “aristocracia de leitores” e condena o livro de bolso por proporcionar a leitura a “muitas pessoas que não tem necessidade de ler” e lhes dar uma “pretensão intelectual”. Contra o novo formato de leitura também se manifestaram nomes de prestígio das letras francesas como Henri Michaux, Maurice Blanchot e Julien Gracq, que se recusou a editar seus romances em livro de bolso por considerá-lo não condizente com a relação de “desejo e distância” que deve ser representada na qualidade do objeto material. Em 1962, numa ótica diversa e suplementar, o filósofo alemão Jürgen Habermas sinalizara uma contradição na comparação entre as bem cuidadas obras lançadas pelos clubes de livro e o títulos de bolso: “Com os livros de bolso, o que é durável aparece sob a forma do perecível, enquanto, ao contrário, os clubes do livro oferecem sucessos literários efêmeros sob a forma de livros feitos para durar: encadernados e com as bordas das páginas douradas”, escreveu ele em “Espaço público — Arqueologia da publicidade como dimensão constitutiva da sociedade burguesa”.
Em sua edição de novembro de 1964, a revista “Mercure de France” publicou um artigo de 16 páginas, “A cultura de bolso”, no qual o filósofo e historiador da arte Hubert Damisch denunciava o livro de bolso como uma “ilusão cultural” e uma iniciativa “mistificadora”, pois colocava em todas as mãos “substitutos simbólicos de privilégios educativos e culturais dos quais a grande massa não participa”. O formato “cumpre de fato com a transformação do livro de obra impressa em produto; produto tão bem concebido e apresentado que possa ser proposto ao consumidor nas mesmas condições e seguindo os mesmos métodos de qualquer produto detergente”, escreveu o filósofo, para quem a mercantilização do livro de bolso questionava sua legimitidade cultural.
O contra-ataque foi lançado logo no início de 1965 pela revista “Les Temps Modernes”, então dirigida por Sartre, em dois números coordenados pelo escritor Bernard Pingaud, com textos dele mesmo, Jean-François Revel e Philippe Sollers, entre outros. Em sua réplica, Pingaud defendeu a obra de bolso como um objeto modesto, imprório ao “entesouramento”, cuja própria “indignidade” lhe conferia valor. “O livro de bolso é feito para circular, servir, e preencherá plenamente seu papel no dia em que, considerado como um simples meio e não como um fim, a leitura, graças a ele, cessará de ser um privilégio para se tornar uma partilha, o caminho mais curto que liga um homem a outro”, escreveu. Para “Les Temps Modernes”, o livro de bolso se bastava como um vetor de cultura, e o determinante era o seu conteúdo. A controvérsia acabou por se apaziguar na segunda metade da década de 60:
— É preciso situar no contexto sociopolítico da época: 1964 se aproximava de 1968 e do período forte das ciências humanas na França. Maio de 68 e os anos 1970 varreram este debate da atualidade — diz Legendre.
Mais de 100 milhões de exemplares por ano
Nos anos que se seguiram, o livro de bolso não só adquiriu respeitabilidade cultural como afirmou sua importância no mundo editorial. Segundo o SNE, a fatia dos títulos de bolso no total de livros vendidos em 2011 chega a 52,68% para a categoria de literatura, 39,57% para dicionários e enciclopédias e 19,21% para documentos e ensaios de atualidade. No total foram vendidos 107,4 milhões de exemplares (contra 450,6 milhões para os livros de grande formato), uma redução de 2,9% em relação ao ano anterior (110,6 milhões), seguindo a tendência registrada desde 2008.
Os e-books não podem ser considerados responsáveis por esta queda. A edição digital ainda está em fase de desenvolvimento na França: 18% dos franceses declararam ter baixado um livro em 2011, contra 13% no ano anterior, segundo pesquisa da GFK, uma das principais empresas de pesquisa do mercado editorial no mundo. Em volume de negócios, houve um aumento de 7,2% em 2011, num total de 56,8 milhões de euros, mas a edição digital representa apenas 2% do mercado total de livros, de acordo com o SNE. Sinais dos tempos, para festejar os 60 anos de sua coleção, a editora Hachette lançou o website “o e-book do livro de bolso”, com uma oferta de mais de 500 títulos, mas sem uma grande diferença de preço entre a versão papel e a digital.
Para Legendre, as inquietações em relação ao livro de bolso correspondem menos ao lento progresso da edição digital, com oferta insuficiente e preço pouco competitivo, e mais a um enfraquecimento do livro em geral (diminuição de 0,3% na venda de exemplares no período 2010-2011).
— Há o reforço de um fenômeno que já era bem identificado: a redução do tempo de vida de um livro. Os lançamentos permanecem entre um mês e um mês e meio nas livrarias, algo que tende a se acentuar. Até agora o livro de bolso assumia o lugar na continuação, mas mesmo este formato começa a enfrentar dificuldades — diz.
Apesar das incertezas, ele acredita que as obras de bolso ainda têm uma vida longa pela frente:
— O livro de bolso ganhou toda sua legitimidade nas práticas de leitura. Se pensarmos nas coleções Folio, Actes Sud, Seuil e outras, tratam-se de livros de qualidade estética e que não são indignos das práticas culturais, muito pelo contrário.
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