Prosa e Verso
Por José Castello
Contaram-me uma história, vivida por supostos personagens cujos nomes aqui omito,
não só porque não me pertencem, mas porque a verdade é que os esqueci. Uma história
que fica melhor anônima, pelo que contém de violência contra si. Não sei se é
verdadeira, quem me contou pode simplesmente a ter inventado por alguma razão
vingativa, ou cruel. Não importa: interessa que, verdade ou lenda, ela fala, fala,
de modo exemplar, dos tempos em que vivemos. Certo autor brasileiro jovem, de
carreira literária ascendente, teve um de seus romances traduzidos nos Estados
Unidos. Semanas depois, a pessoa que me relatou a história esteve, por coincidência,
em Nova York, esbarrou com a tradução em uma livraria, e, por curiosidade, e também
por amizade, a comprou. Como não tinha o que ler durante o voo de volta, resolveu a
ela se dedicar, mesmo já tendo lido o livro em sua versão original. Tomou um choque:
parágrafos inteiros foram arrancados, outros inteiramente transformados, diálogos
inexistentes acrescidos, enfim - o estilo de seu amigo, submetido à velha arte da
traição, fora mastigado pelo "estilo internacional". Chegando ao Brasil, procurou o
autor do romance. "Você viu o que fizeram com seu livro?" O amigo escritor não se
alterou e respondeu algo assim: "Você fala das modificações? Ora, para ser traduzido
nos Estados Unidos hoje é preciso aceitá-las, e então eu aceitei". Talvez o fato nem
tenha se passado em território americano, mas europeu. Talvez seja uma simples
fantasia da pessoa que me contou. Um delírio? Nada disso importa: interessa, sim, o
quanto a história, verdadeira ou falsa, está encharcada de verdade. Importa como ela
espelha uma situação de nosso tempo e de nossa cultura. A nova geração brasileira de
escritores produziu excelentes nomes. Vou, para ser discreto, citar nomes de uma
geração anterior: qual literatura não se orgulha de ostentar escritores como Michel
Laub, Bernardo Carvalho e Rubens Figueiredo? Contudo, a geração seguinte começou a
escrever em um momento de grande expansão não só do mercado brasileiro, mas também
do mercado internacional. Ótimo: quem pode ser contra isso? Mas há sempre alguma
sombra despejada pelas coisas mais belas. Muitos escritores jovens - não todos
felizmente! - passaram a escrever com os olhos no mercado. Para galgar listas de
mais vendidos, para conseguir traduções rápidas, para ganhar prêmios de prestígio.
Isso, na maior parte das vezes, como se sabe, quase nunca funciona. Mas é o que
fazem. Aí estou eu, aqui no meu canto, lendo "Desejo" (Editora Tordesilhas), da
escritora austríaca Elfried Jelinek - uma mulher que já passou de seus 65 anos e
que, em 2004, ganhou o Nobel de Literatura. Não conheço o alemão, então não posso
avaliar o rigor da tradução de Marcelo Rondinelli. Posso afirmar, ainda assim, que o
resultado é esplêndido. Leio o romance e, no avançar das páginas, me vem uma ideia
simples: Elfried é uma escritora que, em definitivo, não escreve para o mercado. Não
aceitaria alterações em seu texto, ainda que propostas pelos melhores editores e
tradutores. É fiel ao estilo rascante, enroscado, e ao amor obsessivo pela
linguagem. Eis uma escritora que devia ser leitura obrigatória para os jovens
escritores de todo o mundo: Elfried Jelinek. Não há melhor palavra para defini-la:
intransigência. Todo escritor (todo artista) deve ser intransigente e levar às
últimas consequências os resultados de sua linguagem. Se ele é bom, se é ruim; se é
vendável ou invendável; se é "internacional" ou "regional" - nada disso deve
importar. Já pensaram o que aconteceria se Guimarães Rosa resolvesse
internacionalizar suas narrativas? Se passasse pela cabeça de Clarice Lispector a
ideia insana de padronizar seus escritos? Se José Saramago resolve pontuar à maneira
clássica, e tornar mais "digestivos" seus alucinados diálogos? Seria o desastre.
Seria a morte da literatura. E é da morte da literatura que se trata aqui. A
personagem principal de Elfried, a infeliz Gerti, torna-se exemplar. Submete-se aos
desejos sexuais do marido Hermann, portador de uma doença sexualmente transmissível.
Apaixona-se por um jovem, Michael, que só se interessa em subjugá-la. Seu pobre
filho, ainda criança, se deixa fascinar pela mente perversa do pai. Gerti está
cercada de senhores - está escravizada. Que vantagens tira disso? Uma coisa
certamente se põe em risco: o contato com seu desejo. E é o contato com o desejo que
está em jogo no que estou falando. Em momento avançado de "Desejo", assim se
descreve a tragédia de Gerti: "Ela se encontra consigo onde quer e ao mesmo tempo
foge de si, porque pode haver em algum outro lugar um encontro mais esplêndido com
seu íntimo, onde a pessoa possa ficar sentada nas nuvens e desejar dentro de si
ainda mais de suas sentimentalidades. Ela é tão fugaz quanto uma ligação que a
qualquer momento acabará por se dissolver". É frágil o desejo - ele facilmente nos
escapa se, sem levar muito a sério, começamos a ceder aqui e ali. Mas ele é também
tudo o que temos - e é com ele que os escritores escrevem. Diante de uma
montanha, Gerti se espanta com a dificuldade de chegar a este lugar que chamamos de
desejo. Ponto de intransigência e de resistência - de transformação e criação. "A
mulher nota que falta a ela um ponto fixo, um ponto de parada onde sua vida possa
esperar". Se o que sairá desse ponto será extraordinário, ou assustador, ninguém
pode prever. Mas foi sem dúvida agarrada a esse suporte que Elfriede Jelinek
escreveu seu romance. É para experimentar o contato com esse ponto fatal - no qual
uma vida se decide, ou se perde - que devemos lê-lo. Meu amigo, o escritor Ronaldo
Correa de Brito, com quem costumo dividir minhas aflições, me lembra da história de
Lao Tsé, o grande pensador oriental, que viveu até os 80 anos de idade recolhido em
uma floresta para escrever o "Tao Te King", livro que é um dos pilares do pensamento
chinês. Ao fim, em vez de procurar alguém que o vendesse, entregou-o a um guarda
qualquer de fronteira, sem nada falar sobre o livro, sem nada recomendar.
Passaram-se vinte e dois séculos e, maravilhados, ainda lemos o Tao.
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